Um recorte sobre a reciclagem têxtil no Brasil.

By Fashion Revolution Brazil

2 years ago

*por Julia Codogno

Vamos entender um pouco sobre a nossa produção 

A indústria têxtil brasileira tem quase 200 anos de história e é a rede produtiva mais completa do ocidente, sendo responsável pelo cultivo de matéria-prima como o algodão, além da fiação, tecelagem, beneficiamento, confecção, distribuição, varejo e desfiles de moda. O Brasil também se destaca como o 4º maior produtor – e consumidor, de denim e malha do mundo. 

Segundo dados compartilhados pela ABIT [Associação Brasileira da Indústria Têxtil e Confecção] em 2020, o Brasil produziu 7,93 bilhões de novas peças – contra 9,05 bilhões em 2019. A estimativa é de algo em torno de 1,91 milhões de toneladas têxteis. Ainda de acordo com relatórios do setor, a indústria têxtil e de confecção teve um faturamento de R$194 bilhões em 2021. Um crescimento esperado de, aproximadamente, 20% em relação aos R$161 bilhões somados no ano anterior. Com isso, o varejo de moda nacional cresceu cerca de 16,9%. 

Os maiores produtores estão concentrados entre as regiões sul e sudeste, com 600 mil e 340 mil trabalhadores, respectivamente. O estado de São Paulo abriga grande parte de pequenas e médias empresas responsáveis pela confecção de roupas do país. Só para termos uma ideia, são cerca de 800 empresas abertas, próximo de 30% de toda a capacidade produtiva. Só na região do Bom Retiro, um dos mais importantes polos de moda do mercado, estão localizados 1.700 lojistas, sendo 1.400 também fabricantes de artigos têxteis. O site bomretironamoda.com.br estima que 55% da moda feminina seja proveniente do local e que mais de 80 mil pessoas circulam pelas ruas do bairro diariamente em busca de novos produtos. 

Alguns números alarmantes desse processo 

Em meio a uma produção já reconhecida como ultra fast fashion e movida por um sistema de exploração, alto consumo e grande descarte, começamos a vislumbrar um problema que escoa pelas ruas – literalmente! 

A Loga [Logística Ambiental de São Paulo] que é a empresa responsável por fazer a coleta nas regiões Brás e Bom Retiro, relata que são gerados o equivalente a 63 toneladas de sobras de tecido por dia, sendo: 45 toneladas retiradas do Brás, 08 toneladas do Bom Retiro e 10 toneladas da Vila Maria. Números que integram as 160 mil toneladas de resíduos acumulados anualmente em todo o território nacional. Entre as sobras encontradas pelas calçadas das cidades, também estão outros materiais oriundos de oficinas de costura, como agulhas quebradas, linhas, tubos de papelão, papel Kraft comumente utilizado em moldes, plásticos, entre outros artigos. 

Um cenário que está longe de ter um final feliz. 

Estima-se que a maior parte de todo esse material acaba sendo destinado a aterros sanitários e, em diversos municípios, a lixões a céu aberto, misturados a outros tipos de lixo e sem qualquer controle ou segregação. Um panorama dessa realidade pode ser encontrado no estudo global “A New Textiles Economy, disponibilizado pela Fundação Ellen MacArthur, que indica que apenas 1% das roupas são reutilizadas ou recicladas. E que um caminhão cheio de resíduo têxtil possa ser destinado a aterro ou incineração diariamente no mundo todo. 

Mas então, quais são as possibilidades (reais) de reciclagem? 

Mesmo diante de tantas complexidades, atuar junto à transformação sistêmica desse setor – em etapas produtivas e de pós-consumo, se torna essencial para remodelar a indústria e a maneira como nos relacionamos com ela. Seja quem produz, seja quem consome. A reciclagem não tem ou terá teor de resolução máxima de um problema tão enraizado, mas pode ser parte de um caminho mais responsável e positivo para seguirmos costurando outras (e melhores) realidades. 

Para começar esse papo, é importante que possamos entender o que é a reciclagem têxtil e quais são as alternativas disponíveis no mercado. E, para isso, convidamos a Consultora Têxtil e criadora da Oficina de Tecidos, Ana Scalea. Ana está no mercado há mais de 26 anos e acompanha de perto o desenrolar dessa trama. 

 

Julia Codogno para Fashion Revolution: Ana, de forma mais prática, o que podemos compreender como reciclagem têxtil? 

Ana Scalea: A reciclagem têxtil é um processo que transforma restos de tecido ou roupas inteiras em fibras que podem ser utilizadas novamente pela indústria. 

Julia Codogno para Fashion Revolution: Quais são as principais técnicas disponibilizadas atualmente? Você pode contar um pouco sobre elas? 

Ana Scalea: Atualmente, temos dois tipos de reciclagem têxtil: a química e a mecânica. Na reciclagem química, reciclamos as fibras sintéticas. Já na reciclagem mecânica, separamos os tecidos por cor e, se for possível, por tipo de fibra. Aqui é importante destacar que, quando os retalhos são provenientes de confecções, é possível saber qual fibra foi utilizada no tecido descartado. Nesse processo, os retalhos são desfibrados, transformados em novas fibras, depois em mantas e fios. 

Julia Codogno para Fashion Revolution: E quais são os materiais têxteis que podem ser reciclados? 

Ana Scalea: Na reciclagem mecânica podemos reciclar roupas sem aviamentos (sem botões, zíperes e outros aviamentos), lençóis, toalhas, retalhos, sobra de corte de confecções e roupas sem condições de uso (que podem estar rasgadas). O que não pode ser reciclado mecanicamente: couro, poliuretano, roupas sujas, tecidos com paetês, tecidos resinados ou dublados, espumas, elásticos e passamanarias e moda praia. Não é possível fazer a reciclagem mecânica desse tipo de artigo devido a quantidade de elastano presente nas peças. Já na reciclagem química podemos reciclar os tecidos sintéticos.

Julia Codogno para Fashion Revolution: Como podemos destinar esses materiais para reciclagem de maneira correta? 

Ana Scalea: Para pessoa física: É possível encaminhar tecidos para reciclagem em postos de coleta distribuídos por grandes magazines, como Renner e C & A, por exemplo. Também podem ser endereçadas a OSCs ou instituições de caridade. É importante lembrar que as peças podem estar puídas ou rasgadas, mas devem estar limpas e higienizadas. Para pessoa jurídica: As confecções podem separar o resíduo têxtil em sacos transparentes, sem papel e, se possível, identificando a composição têxtil. Depois, é só destinar para empresas especializadas. No Brasil, temos algo em torno de 21 empresas atuantes, dentre elas a Cotton Move ou a Renovar Têxtil. Vale acessar e conferir como tudo funciona. Os uniformes institucionais também necessitam de atenção. Para isso basta retirar os aviamentos como zíperes ou botões e, se possível, identificar a composição têxtil. 

Julia Codogno para Fashion Revolution: O que é possível fazer com um material reciclado? Ele pode ser utilizado normalmente pela indústria da moda? Você pode falar um pouco sobre essas aplicabilidades? 

Ana Scalea: Tudo irá depender da qualidade do resíduo têxtil. Se ele estiver em boa qualidade, poderá ser desfibrado e transformado em fio novamente, dando origem a um novo tecido e mitigando os impactos causados pela produção e descarte. Se a qualidade não for satisfatória, o material desfibrado pode ser utilizado para enchimento de almofadas, não tecidos (conhecidos como TNT), mantas e cobertores. 

Uma boa iniciativa para conhecer é a da empresa Puket. A marca possui uma campanha de recebimento de meias (mesmo que desparceiradas) que são destinadas a reciclagem e transformadas em cobertores para pessoas em situação de rua. 

Julia Codogno para Fashion Revolution: Ana, às vezes existe um ruído quanto à qualidade ou estética de um artigo reciclado. Você pode nos contar quais são as principais características de um material reciclado? 

Ana Scalea: Por ser um material desfibrado, as fibras são mais curtas. A cor também pode variar de acordo com o lote. Além disso, existe a propensão ao pilling (as famosas bolinhas, como costumamos falar). Já o aspecto, costuma ser mais rústico. O que não tira a beleza e qualidade do tecido. 

Julia Codogno para Fashion Revolution: Nos últimos anos, estamos acompanhando o crescimento exponencial do uso do PET reciclado na indústria da moda. O que você pensa quanto a sua utilização no setor? 

Ana Scalea: Eu sempre falo que a indústria da moda tem que resolver primeiro o problema do lixo que ela mesma produz, e que as garrafas PET, na verdade, são um problema da indústria de bebidas. PET reciclado é poliéster. Sabemos da problemática dos microplásticos liberados a cada lavagem e do desconforto térmico proporcionado em peças desenhadas para um clima quente, por exemplo. Pra mim, não faz sentido algum trabalharmos uma camiseta de algodão orgânico (ouro no meu ponto de vista) mista com PET reciclado.

O PET reciclado pode ser aplicado onde se usaria o poliéster “virgem”. Em calçados, jaquetas impermeáveis e corta-vento ou até mesmo em tecidos de decoração, por exemplo. Peças com maior durabilidade e que não necessitam de lavagens frequentes. 

Julia Codogno para Fashion Revolution: Por fim, o que você pensa sobre a indústria da moda, o descarte têxtil e a reciclagem? 

Ana Scalea: Precisamos evoluir muito! Implantar com urgência a logística reversa e fazer valer a Política Nacional de Resíduos Sólidos. Vale salientar que a Lei 12.305/2010, popularmente chamada de PNRS [Política Nacional de Resíduos Sólidos] completou 10 anos em 2020 e pouco avançou quando se trata de fiscalizar aqueles que deveriam ser responsáveis pelo que é gerado. São mais de 26 anos na área têxtil, mais de 26 anos vendo as ruas do Brás e Bom Retiro com sacos de retalhos rasgados no fim do dia. Lembrando que estamos sofrendo com a crise e a importação de fibras e fios e que temos a solução jogada, literalmente, no lixo. 

A técnica ainda está em curso, em processo de evolução. Podemos pensar que a reciclagem é um meio. Meio de mitigar impactos nocivos proporcionados por extensas etapas produtivas e constante descarte indevido. Também pode ser o meio (jamais a solução) de sobrevivência para diversos catadores que dão novo sentido àquilo que é tido como lixo, como algo sem valor. A reciclagem é uma forma de regenerar, de ressignificar e de revolucionar. 

 

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Imagem: Ahmed Akacha para Pexels 

Por Julia Codogno 

Julia Codogno é comunicadora de moda e sustentabilidade. Desenvolve seu trabalho por meio de mentorias, palestras e conteúdos educativos. É criadora de um guia digital que reuniu mais de 200 marcas com iniciativas de impacto positivo e co-criadora do projeto Retecendo. Acompanhe @juliacodogno