Lacunas do trabalho justo: o que falta para a moda erradicar o trabalho escravo contemporâneo?

No ano do 10º aniversário do acidente do Rana Plaza e a criação do Fashion Revolution, as práticas de mercado ainda estão aquém do necessário. 

Há 10 anos, o edifício Rana Plaza ruía em Bangladesh, matando mais de mil pessoas, em sua grande maioria, mulheres trabalhadoras da indústria da moda. O caso evidenciou as condições degradantes que as trabalhadoras estajam sujeitas e levantou uma série de mobilizações. Entre elas, a criação do movimento global Fashion Revolution e a assinatura do Acordo de Bangladesh sobre Segurança contra Incêndios e da Aliança para a Segurança dos Trabalhadores de Bangladesh por parte de grandes varejistas europeus. Apesar dos esforços, pouca coisa mudou: a estrutura global segue inerte, dando margem a violências de todos os tipos contra as mulheres. 

 

O motivo: assegurar a lógica mercadológica da prevalência do lucro. Por exemplo, a Transparency International aponta que um novo acordo internacional foi feito em 2021. Desta vez, o esforço é para reforçar que empresas estabeleçam um programa abrangente de saúde e segurança em confecções de Bangladesh e outros países, como o Paquistão. Mas pesquisadores do Instituto Real de Tecnologia de Melbourne, na Austrália, demonstram por quê estes acordos podem se tornar falhos: alguns meses depois do acidente do Rana Plaza, 222 empresas haviam assinado o Acordo de Bangladesh sobre Segurança contra Incêndios. 

Em 2018, o grupo entrevistou varejistas australianos que afirmaram que só compravam de fabricantes em Bangladesh que cumpriam o acordo, porém, os fabricantes afirmaram que sua conformidade era uma farsa. As mudanças previstas na lei, como o limite das horas extras e a disponibilidade de uma enfermeira ou babá na instação eram apenas executadas em dias de auditoria. O motivo para tal era manter os custos baixos. Já outro fabricante ressaltou que o preço e qualidade ainda desempenham um papel importante para as vendas. 

Segundo o Clean Clothes Campaign, apenas 0,6% do preço de uma blusa no varejo vai para a costureira. O dono da fábrica  retém 4%, o rótulo da marca, 12%, e o varejista leva 59%. Esse é, claro, um cálculo médio, mas a estrutura de produção não muda globalmente, inclusive, no Brasil. Na margem da sociedade, as trabalhadoras do setor da confecção enfrentam os mais diversos abusos que configuram o trabalho escravo contemporâneo: salários baixos, longas horas de serviço, ambientes de trabalho em condições insalubres, assédio moral e sexual, violência patrimonial, entre outros. 

Números e realidade brasileira

Em 2022, Auditores-Fiscais do Trabalho resgataram 2.575 trabalhadores de condições análogas às de escravo. O trabalho escravo urbano teve 210 vítimas em atividades econômicas, com destaque para a confecção de roupas, 39. O trabalho doméstico também se sobressaiu: o aumento vem sendo registrado desde 2021, onde 31 vítimas foram resgatadas. Em 2022, foram 30 vítimas. O MPF (Ministério Público Federal) ressalta que a principal causa da escravidão contemporânea é a vulnerabilidade social, associada ao aumento do desemprego, falta de instrução e baixa qualidade de vida. 

Segundo a Coordenadora Nacional da Conaete (Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas), Lys Sobral Cardoso, o dado oficial brasileiro mostra que o número de mulheres resgatadas não chega a 10% e que o valor não condiz com a realidade. “Isso diz sobre a necessidade de se prestar atenção ao atendimento às mulheres vítimas de trabalho escravo contemporâneo”, explica, “também não reflete a inserção cada vez maior delas no mundo do trabalho”.

Lys afirma que o perfil destas mulheres não diverge muito, seja no campo ou no meio urbano: é o mesmo perfil das pessoas historicamente discriminadas no Brasil, negras ou pardas em sua imensa maioria. “Existe uma ligação muito grande entre não-garantia de direitos no meio rural e nas comunidades tradicionais, com a persistência de formas de escravidão no meio rural e urbano”, salienta. A exemplo: comunidades indígenas e quilombolas que não têm seus territórios reconhecidos e são expulsos por meio de conflitos agrários. 

Em julho de 2022, aconteceu a maior operação de combate ao trabalho escravo contemporâneo no país, resgatando 337 pessoas, em 15 estados. A Operação Resgate 2 contou com 105 ações de fiscalização, envolvendo 50 equipes, mais de 100 auditores fiscais da Inspeção do Trabalho, 44 procuradores do Ministério Público do Trabalho, dez procuradores do Ministério Público Federal, 150 agentes da Polícia Federal e 80 da Polícia Rodoviária Federal e 12 defensores da Defensoria Pública da União. Foi, até então, a maior estrutura envolvida para resgatar vítimas da escravidão contemporânea, agindo tanto na área rural quanto urbana. 

Para Graziella Rocha, coordenadora de projetos da Asbrad (Associação Brasília de Defesa da Mulher, da Infância e da Juventude), a Operação Resgate 2 foi um sucesso devido ao tempo de planejamento e sinergia entre as instituições. Porém ela também salienta que o correto seria queo empenho de recursos financeiros e humanos, fosse feito de forma perene e não uma vez por ano, como foi o possível de ser realizado, no contexto de desmantelamento de políticas públicas

Atuando em Guarulhos, a Asbrad vê a dificuldade das operações de fiscalização de chegar às oficinas de costura clandestinas. A cidade está na rota de novos espaços da região metropolitana de São Paulo no qual a confecção migrou, devido a fiscalização mais intensa em regiões conhecidas, como Bom Retiro e Brás, e por ter o custo de aluguel mais barato. Graziella relata que, agora, uma das estratégias das empresas intermediárias é de passar a incentivar casais migrantes a montarem estruturas próprias para costurar “em casa” – quitinetes alugadas em bairros periféricos. “O modelo cria uma falsa sensação de liberdade, de ‘empreendedorismo’, mas, na verdade, aumenta a lucratividade dos intermediários,  dificulta a fiscalização e, portanto, a responsabilização solidária das empresas que na ponta lucram com a comercialização dessas roupas, afirma”.

Esse sistema os obriga a trabalhar em jornadas exaustivas, sem qualquer tipo de proteção laboral e arcando com custos como aluguel e luz. Segundo o Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil, entre os 10 municípios com mais autos de infração lavrados no setor de confecção de vestuário (exceto roupas íntimas), seis pertencem à região metropolitana de São Paulo. 

Nesse contexto, existe uma ligação íntima entre o trabalho escravo contemporâneo e a violência doméstica – sendo ela psicológica, física ou patrimonial. 

 

Palavras-chaves: vulnerabilidade, patriarcado e violência

Quem são as trabalhadoras que produzem suas roupas? Esta é uma chamada importante feita pelo Fashion Revolution, com o intuito de dar visibilidade às mulheres que estão “no chão de fabrica”. Elas são assediadas e trabalham em condições insalubres em diversos lugares do Sul Global. Uma característica em comum, nestas regiões, é o desenvolvimento tardio e a forte presença do patriarcado. 

Segundo o último Índice de Transparência na Moda Brasil, das 139 pessoas resgatadas em 2019, em São Paulo, 43 eram mulheres que trabalhavam em oficinas de costura. O documento afirma que “na capital do estado paulista, o setor têxtil é um dos que mais recebe denúncias sobre trabalho escravo contemporâneo”. Já o relatório Construyendo Un Mundo Plural expõe um pouco mais esse cenário:, em 2019, apenas 5.936 mulheres venezuelanas acessaram o mercado de trabalho formal brasileiro, frente há 14.801 homens.

Com a pandemia, o quadro piorou, tendo em vista que as mulheres foram as mais impactadas pela crise sanitária. “A crise econômica que assola o Brasil teve efeitos muito significativos na vida dessas mulheres, principalmente no agravamento da falta de trabalho e oportunidades e no aumento de situações de assédio”, destaca o documento. Emanuela Pinheiro, fundadora da organização Mulheres do Sul Global, mostra uma realidade que vai, inclusive, mais além. Trabalhando com migrantes na época do pico da pandemia da Covid-19, ela notou que, em situações em que a mulher estava empregada e o homem não, a violência se agravava. 

Para ela, a violência patrimonial e o machismo são muito latentes na realidade destas mulheres – que vêm de países latinos como Venezuela e Bolívia, e africanos, como Gâmbia e Congo. “Se você colocar 21 pessoas, 20 mulheres e um homem, sentados na máquina, é impressionante como se inverte a relação de poder e elas ficam completamente orquestradas por aquela figura só porque ela é masculina.”, conta. 

A Mulheres do Sul Global é uma empresa de impacto social dedicada ao empoderamento econômico de mulheres refugiadas de imigrantes e brasileiras em situação de vulnerabilidade através da costura. Atuando desde 2017 na cidade do Rio de Janeir, Emanuela aponta que já recebeu grupos de mulheres vítimas de tráfico de pessoas, aliciadas para fazer prostituição, ou que experenciaram trabalhos anteriores no qual cumpriam longas cargas horários, sem terem clareza de quanto ganhariam. 

Muitas sabiam que estavam inseridas em uma situação exploratória, mas era o único jeito de sobreviverem. “Eu entendi que os empregadores se aproveitavam daquele desespero, daquela vulnerabilidade absoluta. ‘Se eu não trabalho hoje, eu não tenho dinheiro para comer amanhã’ e eles ofereciam qualquer coisa”, explica. O Brasil, apesar de ter uma das leis mais sofisticadas de acolhimento de migrantes, precisa de estruturas mais robustas para garantir direitos a eles. 

Uma vez inserido legalmente no país, o migrante tem acesso a programas sociais como o Bolsa Família, mas não há fomento de oportunidades de trabalho para esta população. “Os setores privado e público onde estão nestes lugares?”, questiona Emanuela, “quando fiz trabalho de advocacy, perguntei quais são as oportunidades a uma empresa. Eles disseram: ‘a gente tem um programa para PcD (Pessoa com deficiência), um programa para menores aprendizes…’, isso porque existe incentivo fiscal”. 

Lys complementa este pensamento, destacando a necessidade de prevenir que as vítimas de trabalho escravo contemporâneo se tornem vítimas. “As políticas públicas devem garantir os direitos fundamentais à moradia, saneamento, educação, creches”, enumera, “para garantir a fixação das pessoas em seus locais de origem. Um perfil predominante (de resgatados) são pessoas que migram em busca de sobrevivência, de garantia de meios de vida e trabalho para si e sua família”. Outro ponto defendido pela coordenadora é o aumento do número de auditores fiscais do trabalho: “hoje temos um déficit de quase 60% no quadro”. 

O papel fundamental da moda

Como anunciado pelo Índice de Transparência na Moda 2022, é alarmante o cenário de falta de transparência das empresas brasileiras. Foram analisadas 60 grandes marcas e varejistas do mercado brasileiro, das quais 48% não pontuaram na seção Tópicos em Destaque – na qual são levantados informações sobre temáticas urgentes, tais como combate ao trabalho escravo contemporâneo e pagamento de salário justo para viver. 

Como o relatório What a Way to Make a Living frisa: “exploração e violação dos direitos trabalhistas não são uma aberração do sistema, mas estão integradas ao paradigma econômico neoliberal”. As relações laborais devem respeitar direitos fundamentais como liberdade, independência e a sindicalização. Caso contrário, as circunstâncias de violação dos direitos humanos, tráfico de pessoas e trabalho escravo contemporâneo continuarão. 

Para seguir mobilizando a indústria da moda no Brasil, te convidamos para colocar no calendário e participar da Semana Fashion Revolution, que acontece de 22 a 29 de abril de 2023. ​​​​​​​​​Saiba mais acessando: https://brasil.fashionrevolution.org/

Para denunciar casos de trabalho escravo contemporâneo, Disque 100 – Disque Direitos Humanos – ou faça a ocorrência via site do MPT (Ministério Público do Trabalho). A denúncia pode ser feita de forma anônima.

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Juliana Aguilera

Jornalista especializada em meio ambiente e justiça socioambiental, que valoriza a comunicação como ferramenta para criação de um futuro mais justo. Tem passagem no Instituto Modefica, Mongabay Brasil, Instituto Internacional Arayara, entre outros. 

Economia da Paixão: Qual é o seu propósito no mundo da moda? 

Economia da Paixão 

Qual é o seu propósito no mundo da moda? 

Por Paula Costa 

A indústria da moda é uma das mais expressivas do mundo, sendo desde sempre responsável por muitos dos  movimentos de inovação e hoje, mais do que nunca, esbarrando em temas em voga como digitalização e  sustentabilidade ambiental e sociocultural. A previsão é que o setor atinja o valor de 1,7 trilhão de dólares em  2022 (Statista), impactando consideravelmente o Brasil, onde temos a maior cadeia têxtil do Ocidente:  abrangendo desde a produção de matéria-prima, passando por confecção, até apresentação de produtos finais  em desfiles e no varejo.  

Por trás dos grandes números, além de consumidores, estão milhares de profissionais das mais diversas áreas.  Somente no Brasil, segundo o IEMI, até 2021 a moda registrou 1,36 milhões de empregos diretos e 8 milhões  indiretos – e olha só: a maioria desta mão de obra é feminina! Também no nosso país, um levantamento de 2019  da Folha de S. Paulo identificou 50 faculdades espalhadas em 11 estados. E é exatamente neste ponto que começo 

a aterrissar. 

Por que trabalhar com moda? 

Muitas pessoas crescem com o sonho de trabalhar com moda e este fato só é favorecido a medida em que evoluem o mercado de influenciadores, com muitos ancorados a esta indústria, e o universo do empreendedorismo, que  motiva a aspiração de muitos a assinarem a própria marca. A armadilha aqui está nos estereótipos deste setor que  lida muito com o campo da imagem.  

Para muitos, o sonho da moda está diretamente relacionado a uma projeção glamourizada do sucesso, que  depende da admiração do outro.  

O filosofo holandês Jan-Willem van der Rijt dizia que “o apetite por aplausos, está entre os traços mais rasos do caráter humano”. É uma colocação bastante dura, até porque conquistar admiração pelas nossas realizações tem  grande valor, mas também carrega o perigo de despertar a vaidade no sentido mais puro desta palavra, que diz  sobre “vazio”. 

Caminhar no vazio para sustentar a admiração, que vem do outro, pode significar uma desconexão com a  própria verdade e distorção da realidade, e o resultado desta sede pela autopromoção, não é nada positivo.  

Foi exatamente isso que um estudo realizado em 2021 com estudantes de administração de Cingapura identificou,  com a afirmação “serei admirado por muitas pessoas” sendo associada a “ansiedade” e negativamente atrelada a  “autorrealização”.  

Estereótipos estão bem fora de moda! 

De forma alguma seguir um sonho nos leva ao insucesso, muito pelo contrário, desde que esteja associado ao  protagonismo pessoal e não ao espelhamento do outro.  

Este protagonismo diz sobre resgatar o autoamor, reconhecer a própria história, honrar origem, habilidades e  desafios que são, na verdade, a nossa maior fonte de força e direcionamento para uma jornada de propósito, onde desvendamos o significado de quem somos e do que fazemos. Neste lugar, nos conectamos com a nossa  criatividade, liberdade e expressão e abrimos as portas para a abundância dos resultados das nossas realizações,  conforme conquistamos espaços de pertencimento. 

O processo de ultrapassar os estereótipos e alcançar o protagonismo, se completa quando ganhamos a  consciência do papel que cumprimos nas necessidades do ecossistema e assim pertencemos, servimos e  evoluímos junto com ele.  

Este movimento de protagonismo e pertencimento, através do qual enxergamos quem somos e quais são os  nossos papeis e potencial de impactar dores latentes em nossos ecossistemas, é a Economia da Paixão, que tem  o potencial de colocar de pé uma nova e mais sustentável estrutura social, econômica, política e ambiental. 

Economia da Paixão e Moda 

Em um setor de grandes números como o da moda, existem grandes missões. Cada profissional que atua na cadeia,  direta ou indiretamente, tem a oportunidade de evoluir pessoalmente de forma síncrona com as contribuições que  oferece. E aqui, podemos começar a pensar em inúmeras pessoas que atingiram esta consciência e se fazem  exemplos da Economia da Paixão.  

É o influenciador que representa e dá voz para um público até então estigmatizado no mercado da moda, os  produtores e empreendedores que criam produtos alternativos e novos modelos de negócio para reduzir o  impacto ambiental da indústria, criativos – como o icônico Virgil Abloh – que trazem para o palco suas origens,  culturas e visões que movimentam inclusão, diversidade e inovação, ou ainda, entre tantos outros agentes, os  profissionais que atuam em grandes marcas, carregando o potencial de abalar de forma necessária o status quo 

do sistema. 

Qual é o seu propósito no mundo da moda? 

A busca pelo movimento da Economia da Paixão começa dentro de nós e pode ser despertada a partir de algumas  reflexões: 

E, por fim, em contextos individuais e coletivos, todos os dias podemos buscar significado em nossa atuação  recalculando rotas em torno dos questionamentos: onde estamos, onde queremos chegar e o que precisa ser feito  para isso.  

Vale sempre manter em mente que os vários papeis que exercemos como profissional, familiar, amigo,  consumidor, entre outros, dependem do significado que geramos por quem somos e pelo nosso olhar  interessado às necessidades dos contextos que habitamos. Em um bom resumo: o propósito está dentro de  nós e ganha vida ao longo de jornadas de pertencimento!  

 

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Paula Costa é comunicóloga formada em Publicidade e Gestão de Varejo pela graduação e MBA da ESPM, especializada em inteligência de mercado, pesquisa de  comportamento e consumo e análise de tendências, co-autora do livro Economia da Paixão e professora de MBA pela ESPM. Baseada na Europa, realiza pesquisas de tendência e acompanha eventos de inovação no mundo todo, ministra talks, workshops e consultorias voltadas para cultura de inteligência estratégica e inovação e lidera a área de  Marketing & People da empresa de inteligência e criação para o varejo Vimer Retail Experience.  

Instagram e LinkedIn | @paulacoliv  

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Novo Índice de Transparência da Moda Brasil revela poucos avanços por parte das maiores marcas de moda do país

Em meio à debates sobre desmatamento e aumento da desigualdade social, relatório brasileiro evidencia em que medida 60 das maiores marcas de moda que operam no país divulgam publicamente suas políticas, práticas e resultados socioambientais.

ACESSE O ÍNDICE DE TRANSPARÊNCIA DA MODA 2022!

Com o objetivo de acelerar mudanças radicais na indústria da moda, o Instituto Fashion Revolution Brasil realiza, anualmente, o Índice de Transparência da Moda Brasil (ITMB). A quinta edição acaba de ser lançada revelando o nível da divulgação pública de 60 grandes marcas e varejistas do mercado brasileiro. O relatório analisa dados sobre suas políticas, práticas e impactos sociais e ambientais ao longo de toda a cadeia de valor, abarcando mais de 200 indicadores que cobrem tópicos relacionados à práticas de compra, salário justo para viver, igualdade de gênero e racial, circularidade, clima e biodiversidade, rastreabilidade da cadeia de fornecimento, iniciativas de governança, entre outros. 

Lançamento do Índice de Transparência na Casa ABIT com o debate *ESG na Moda – Cadeias de Fornecimento e Meio Ambiente com Regina Magalhães e Iara Vicente e mediação Aron Belinky da ABC Associados

Transparência não deve ser confundida com sustentabilidade, mas sem ela será impossível alcançar uma indústria da moda mais sustentável, responsável e justa, portanto a transparência se mostra como uma ferramenta de mudança e não como o objetivo final. A fim de alcançar uma abordagem sistêmica, o ITMB é dividido em cinco seções, sendo elas políticas e compromissos; governança; rastreabilidade; conhecer, comunicar e resolver e tópicos em destaque. 

“Justiça social e justiça climática estão intrinsecamente ligadas. A moda, como uma das grandes indústrias do mundo, deve operar de forma mais justa e transparente, proporcionando um meio de vida digno para seus trabalhadores e contribuindo para a regeneração da Natureza” afirma Isabella Luglio, coordenadora do projeto e a frente da equipe educacional da organização. 

Em um ano que o desmatamento alcançou números recordes e a urgência climática ocupa mais espaço no setor, os dados apresentados no relatório são desanimadores. Apesar da crescente perda da biodiversidade brasileira, nenhuma das 60 maiores marcas e varejistas analisadas divulgam publicamente compromissos mensuráveis e com prazo determinado para desmatamento zero. Se posicionar e agir contra o desmatamento deveria ser crucial e urgente para marcas que operam no Brasil, já que os índices dessa prática aumentaram vertiginosamente e já impactam todos os biomas nacionais. 

A rastreabilidade é um grande desafio para a cadeia produtiva global, porém é o elo crucial capaz de garantir dignidade na vida dos trabalhadores do setor. No relatório deste ano, 67% das empresas analisadas não divulgaram nenhuma informação sobre suas listas de fornecedores. Essa seção foi a que teve maior queda em relação à média geral observada no ano passado, de 21% em 2021 para 18% em 2022. Vale ressaltar que em ano de copa do mundo, diversas marcas de esporte não apresentam bom desempenho, reforçando que a transparência na moda precisa ser pautada também fora do setor. 

Dentre as empresas pesquisadas, a pontuação média foi de 17%, um ponto percentual a menos do que no ano anterior. As maiores pontuadoras foram: C&A (73%), Malwee (68%), Havaianas (57%), Renner (57%) e Youcom (57%). A maior parte das marcas está concentrada na faixa de 0-10% e, entre elas, 22 zeraram a pontuação: Besni, Brooksfield, Caedu, Carmen Steffens, Cia. Marítima, Colcci, Di Santinni, Fórum, Havan, Klin, Kyly, Leader, Lojas Avenida, Lojas Pompéia, Marisol, Moleca, Netshoes, Nike, Penalty, Sawary, TNG e Trifil. 

A divulgação pública de informações confiáveis, abrangentes e comparáveis sobre as cadeias de fornecimento da moda permite que investidores, legisladores, jornalistas, ONGs, sindicatos, trabalhadores e seus representantes cobrem uma prestação de contas por parte de marcas e varejistas. Essa transparência possibilita que tais atores possam examinar o que as empresas alegam praticar em prol da garantia dos direitos humanos e da proteção ao meio ambiente, além de responsabilizá-las por suas políticas e práticas. Possibilita, também, a colaboração entre atores para cessar, mitigar, prevenir e remediar abusos ambientais e de direitos humanos e o compartilhamento de estratégias e melhores práticas sobre essas questões. 

A transparência por si só não resolverá todos os problemas complexos e profundamente enraizados da indústria da moda, mas significa uma linha de base, sem a qual não poderemos avançar significativamente em direção a melhorias reais. Ao jogar luz sobre os lugares e condições em que nossas roupas estão sendo feitas, é possível resolver os problemas de forma mais rápida e colaborativa. E por isso transparência é tão importante. Baixe o ITMB 2022 e faça parte da revolução da moda! 

Índice de Transparência da Moda 

O Índice de Transparência da Moda Brasil 2022 foi elaborado pelo Fashion Revolution CIC e Instituto Fashion Revolution Brasil, contou com o apoio financeiro da Laudes Foundation e da parceria técnica da ABC Associados, consultoria especializada em metodologias para análises do desempenho e perfil de empresas no campo da sustentabilidade empresarial. 

*ESG: Environmental, social, and corporate governance / Governança ambiental, social e corporativa

10 itens para incluir na sua lista da Black Friday
Chegamos a novembro e a tão esperada Black Friday bate à nossa porta, repleta de ofertas imperdíveis e um senso de urgência sem igual. Uma pesquisa recente, solicitada pelo Google ao Instituto Ipsos, apontou que ao menos 71% dos entrevistados estão dispostos a comprar algo durante as ações promocionais. 

As compras online prometem sair na frente. Segundo um levantamento realizado pela Associação Brasileira do Comércio Eletrônico [ABCmm], em 2022, a data deve movimentar algo em torno de R$ 6,05 bilhões no comércio eletrônico, com uma expectativa em número de pedidos que pode chegar a cerca de 8,3 milhões. Um crescimento de mais de 3% se comparado a 2021. 

Ainda de acordo com o mesmo estudo, entre os itens que costumam ser mais buscados nesse período aqui no Brasil, estão telefonia, eletrônicos, informática, eletrodomésticos e eletroportáteis, moda, beleza e saúde. No ranking, artigos de moda – como roupas e acessórios – ocupam um lugar de certo conforto por serem de uso recorrente e, comumente, de valor mais acessível. 

Profissionais do varejo e analistas do mercado também destacam alguns fatores que podem corroborar para tal movimentação: durante a pandemia, em meio ao isolamento social e as medidas restritivas, marcas e negócios de proporções variadas, tiveram que se reinventar – na medida do que foi possível – para continuar atendendo suas entregas e não fecharem as portas. Com isso, a transição para o universo digital precisou ser implementada e acabou sendo bem recebida por quem não tinha outra opção para adquirir um novo produto. Além disso, também notamos o desejo da comunidade por melhores atividades relacionadas ao envio do que é comprado, provocando o mercado a buscar melhores e mais atrativas formas de estabelecer valores convidativos e/ou até mesmo, o famoso frete grátis. A pesquisa disponibilizada pela ABCmm, identificou que o preço estipulado para a entrega pode influenciar em até 90% a decisão de compra de um item nas vendas pela internet. 

Mas, e se pudéssemos ir além? E se em nossa lista de desejos, com oportunidades aparentemente irresistíveis, providas de descontos especiais e a facilidade de compra por meio de um clique, também estivessem presentes alguns itens fundamentais para avançarmos em agendas relacionadas à sustentabilidade? 

Se por um lado temos anúncios pulando aos nossos olhos a cada mudança de canal, passagem no feed ou entre uma música e outra, por outro vislumbramos algumas possibilidades para que nosso eventual consumo seja mais consciente e propositivo – dentro daquilo que se faz possível a cada um de nós. Lembre-se: cada ação individual pode gerar impacto coletivo. 

Para inspirar, selecionamos 10 itens que podem (re)volucionar a nossa percepção nesse momento de conflito:

-Comprar Incentivar negócios locais: 

Por meio da compra de artigos produzidos e comercializados de forma local, temos a oportunidade de conhecer de perto quem está à frente das produções, saber mais sobre etapas e processos, diminuir o trajeto entre quem compra e quem vende e, ainda por cima, fomentar a geração de renda para a comunidade onde estamos inseridos. 

-Comprar Incentivar pequenos produtores: 

Um incentivo que pode ser atribuído por meio da compra daquilo que é produzido e comercializado, possibilitando que esse produtor tenha mais vantagem competitiva para manter seu negócio prosperando ou simplesmente com a divulgação e compartilhamento de suas entregas, fazendo com que mais pessoas possam conhecê-lo. 

-Comprar Incentivar marcas e negócios liderados por mulheres: 

Apesar de serem maioria populacional, mulheres ainda têm muita dificuldade para abrirem, gerenciarem e expandirem seus negócios. Seja por precisarem manter mais de um trabalho (não podemos esquecer do maior e menos remunerado deles – o cuidado com a casa e os filhos ), seja por terem menos incentivos fiscais ou ainda por ocuparem os mesmos cargos e seguirem ganhando menos que homens. Há ainda tantas outras razões que só fazem escancarar uma sociedade misógina e sexista. Sendo assim, quando escolhemos apoiar e consumir de iniciativas lideradas por elas estamos, também, proporcinando que mais e mais mulheres possam conquistar e manter uma independência financeira e ocupar outros e melhores espaços. 

-Comprar Buscar o que você precisa – depois de uma boa olhada no que já tem: As relações de consumo podem ser bastante complexas e ofuscadas por motivações distintas. O poder de compra – e o de escolha – dependem de muitos fatores, como posições de privilégio e acesso. O que torna o verbo “precisar” algo bastante subjetivo. Mas, pensando em quem possui esse direito, em quem pode olhar ao redor e, só assim, escolher o que irá comprar, deixamos uma dica valiosa: Vale consumir algo novo? Será que o que você tem no guarda-roupa ou em outros espaços não é capaz de suprir esse desejo momentâneo por um desconto atraente ou a nova trend da estação? Vamos nos permitir “pensar” mais que “comprar”. Pode ser uma relação interessante. 

-Comprar Buscar produtos de matéria-prima de menor impacto: 

Um levantamento conduzido pela Textile Exchange aponta que cerca de 60% das roupas produzidas globalmente são feitas em poliéster. Um material sintético, atrelado à liberação de micropartículas plásticas – impulsionadas por etapas de lavagem e a não possibilidade de retenção em filtros comuns. 

Um cenário perigoso e que nos alerta sobre impactos assustadores. Estudos recentes identificam que, com tamanha quantidade de artigos plásticos sendo consumidos, já é possível encontrar micropartículas plásticas no sangue humano. 

Preferenciar, sempre que possível, roupas desenvolvidas em matéria-prima natural ou mais sustentável, pode ser interessante para amenizar parte desse esse problema. 

-Comprar Buscar por marcas e negócios que tenham produções éticas e responsáveis: Olhar para a cadeia produtiva da moda e de setores relacionados não é uma tarefa fácil. Responsável pela constante exposição de pessoas a situações análogas à escravidão, a indústria carece de atenção, rastreabilidade e mais atuação de órgãos regulamentadores.

Por isso, sempre que possível, busque por mais informações antes de consumir algo novo. Vale visitar sites, relatórios e tentar entender como, onde e por quem esses produtos estão sendo produzidos. 

-Comprar Buscar produtos que você possa usar por bastante tempo: 

A tal obsolescência programada já faz parte de nossas vidas e vem ditando as regras de como nos relacionamos com a descartabilidade das coisas. Artigos com data de validade sendo disponibilizados à venda como se o planeta fosse uma grande lixeira. Como alternativa, vale apurar o olhar quanto à qualidade dos materiais utilizados e o design para a durabilidade, onde processos são pensados para garantir qualidade e maior tempo de vida útil do que é colocado no mundo. 

-Comprar Buscar produtos de segunda mão: 

O relatório promovido pela plataforma thredup destaca que o mercado de segunda mão deve crescer 3 vezes mais rápido que o mercado de vestuário tradicional. O mesmo estudo também conta que, para 70% dos consumidores, comprar algo usado está mais fácil que há 5 anos atrás. Seja por conta do acesso a mais lojas físicas e online, seja pela crescente de ofertas e valores mais atrativos. 

Consumir produtos de segunda mão pode ser uma alternativa bastante representativa para o bolso e para o meio ambiente. 

-Comprar Buscar por marcas e negócios que indiquem o que fazer com esse produtos após o fim da vida útil: 

Sabe aquele produto que você não usa mais e que já não tem mais possibilidade de conserto ou doação? A responsabilidade pelo destino final desse material não é somente nossa. É fundamental que as marcas identifiquem, de forma correta e transparente, o que e como proceder ao final da vida útil do que ela coloca no mundo. 

-Comprar Buscar por marcas e negócios que sejam transparentes em suas ações e comunicações: 

Não existe transparência sem rastreabilidade. 

Apoiar, preferenciar e poder escolher consumir de marcas que compartilham suas práticas de forma transparente e fundamentadas por indicadores, certificações e outros mecanismos, se faz fundamental para que possamos avançar em tais agendas. O uso de relatórios bem elaborados e a identificação de terceiros, pode ser um caminho rumo à constatação desses fatos. 

Contudo, é importante que a gente entenda que não existe uma fórmula pronta. Não existe um manual ou um checklist que nos aponte o que fazer. Os tais itens sugeridos acima são apenas alguns dos fatores que podem ser considerados quando consumimos algo. São caminhos que nos provocam à reflexão e que nos permitem emergir desse momento que costuma estar atrelado à isenção e ao distanciamento. 

Imagem: Polina Tankilevitch para Pexels 

Por Julia Codogno 

Revisado por André Teixeira

Julia Codogno é comunicadora de moda e sustentabilidade. Desenvolve seu trabalho por meio de mentorias, palestras e conteúdos educativos. É criadora de um guia digital que reuniu mais de 200 marcas com iniciativas de impacto positivo e co-criadora do projeto Retecendo. Acompanhe @juliacodogno

Cota não é esmola, é reparação histórica!
Por Mauroa Spineler e João Pedro

Quer ver de perto o racismo estrutural no Brasil? De acordo com Mauroa Spineler, integrante do Comitê Racial do Fashion Revolution Brasil, e João Pedro, pesquisador e palestrante sobre ancestralidade africana, basta falar sobre cotas, que surgirão uma série de opiniões sobre o assunto. Assim como a artista Bia Ferreira em sua música “Cota Não é Esmola”, os autores também defendem a ideia de que cota não é esmola e, sim, reparação histórica. Em novo texto publicado no blog Fashion Revolution Brasil, Spineler e Pedro traçam um paralelo entre moda, ensino e cotas. Confira a seguir!

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Quer ver o racismo estrutural no Brasil de perto? Basta falar sobre cotas, que surgirão diversas opiniões a favor ou contrária a pauta. Vale lembrar, em primeiro lugar, que o Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento da ADPF 86/2012 e no ADC 41/2014, julgou como constitucional a política de cotas e também o banco de identificação, ou seja, eles são legalmente constitucionais.Vivemos em uma sociedade estruturada no racismo e no sistema da branquitude. E, quando se fala em “branquitude”, não é da pessoa branca em si, e, sim, do sistema opressor que desde sempre negou a educação básica e pública. De acordo com a professora e doutora Edileuza de Souza, em “1837 foi constituída uma lei que proíbe a entrada de negros na escola”. Essa lei perdurou até os anos 50 e logo após o fim dela, um grupo de negros e negras da Paraíba realizaram o primeiro ato para reivindicar a educação para seus filhos.  

O papo sobre cotas não é só sobre ter alunos, alunas e alunes negros dentro das universidade, é sobre ter representatividade e desenvolvimento cultural. O abuso e a mercantatilização de corpos, é a estrutura de poder e dominação estabelecida pelos racismo, dito isso, colocar negros nas univerdades não faz do branco um herói, algo que mostra-se tão gigante como o conhecimento. Então, é só pensar que, se a gente reprime, oprime e inviabiliza aquela voz, estamos também perdendo uma fonte de conhecimento e inovação – algo que eu, Mauroa Spineler, gosto de chamar de “síndrome da branquitude”, quando o branco sente-se no direito de ocupar espaços que são legalmente negros. Um bom exemplo é a fraude de cotas no sistema público de educação, mas reconheço, também, que voltar a falar sobre tal assunto seria um nível de retrocesso gigantesco para algo que já está estudado e determinado por lei. 

O que se propõe com a lei de cotas raciais no Brasil não é um pedido de esmola, de notas, oque se espera é a diminuição de um descompasso histórico que já vem de muitos anos

Reparação histórica é um pequeno ato de uma dívida que nunca será paga, e esta é sobre a maior barbárie que já aconteceu. Foram seres humanos que tiveram seus corpos marginalizados e deslegitimazados por um processo colonizador, pessoas que tiveram seu direito de viver negado e, mesmo assim, produziram durante 388 anos uma evolução de trabalhos e tecnologias por quem teve que viver nas sombras. Em Descolonizando o Conhecimento, palestra-performance, Grada Kilomba fala que nós “não estamos lidando com a coexistência pacífica de palavras e, sim, uma hierarquia violenta que determina quem pode falar”.

Na voz João Pedro.

Como um corpo negro no mundo, eu, João Pedro, falo a partir das cotas raciais para pretos e padros, população que desde o perído colonial foi sequelada pela forma de sistema que instalou-se no brasileiro durante o período da invasão colonial y se perpetua até hoje. Para um sistema de cotas funcionar, é necessário que uma estrutura se mova junto com ele.. Caso contrário, essa lei será falha y provocará ainda mais movimentações negativas. Mas que estrutura é essa? Já não é suficiente para nós, população negra, ter a cota presente nas universidades? Esses questionamentos são bastantes recorrentes nas rodas de debates ou nas rodas de bares, quando o assunto chega e nossas amizades dão sua opinião.

A estrutura que deve montar-se, como disse a professora Vera Rodrigues em uma live, deve ser visualizada como um tripé,  onde existe a entrada (primeiro pé), a permanência (segundo pé) y a oportunidade de sucesso (terceiro pé). Se pensarmos na lei de cotas sem esses princípios, ela será falha! A entrada de corpos negros na universidade é de extrema importância, a possibilidade de adentrar em um concurso é de extrema importância, mas, se só é possível entrar sem apresentar um suporte, é um convite ao fracasso. É como pegar uma pessoa que nunca jogou futebol, entregar a chuteira e falar “sabe o que é gol? Vai lá e faz 2!”. Não estou duvidando aqui da capacidade de cada pessoa negra que usa cotas para adaptar-se ao âmbito acadêmico ou nos trabalhos ofertados por concurso. A intenção é evidenciar que se não nos entregam um suporte, nossa vida será ainda mais difícil.

Colocar pessoas negras dentro de uma universidade para estudar pessoas brancas não é revolucionário ou decolonial, é uma prática racista que nos períodos coloniais era conhecido como o “processo civilizatório”, onde a pessoa negra tinha que abandonar sua essência afro para se enquadrar na lógica europeia ocidental.

Em minha pesquisa na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB/CE), que está disponível na biblioteca da universidade, pude analisar a grade curricular do curso de História y, dos 176 nomes de autores presentes na bibliografia das disciplinas obrigatórias do curso, somente 18 eram de pessoas negras y apenas 3 eram mulheres negras. Muitos artigos já foram publicados apontando como a Unilab apresenta uma característica decolonial y pode até ser, mas a mesma continua racista, pois não utilizar pessoas negras em sua grade curricular configura-se como racismo epistêmico. Devemos ter cuidado com as narrativas utilizadas por pessoas brancas em espaços de poder, pois como a mesma professora Vera Rodrigues me disse em minha defesa de TCC, “não é porque um sistema é decolonial que ele é antirracista”. Pensarmos apenas nessa lógica decolonial é termos “delírios de revolução”, como apontei no meu trabalho com o projeto político curricular do curso de História da Unilab.

Então, do que adianta corpos negros entrarem nesses espaços se ainda vão ter que passar pelo mesmo processo de embranquecimento epistêmico?

Temos que pensar em cotas para além da entrada, temos que pensar a permanência embasada no ConheciPreto, termo que desenvolvi na Unilab, temos que pensar as cotas visando também as oportunidades de sucesso. Assim os corpos negros não irão se preocupar com o mercado de trabalho. Não adianta pensarmos e trabalharmos com o antirracismo e as empresas que utilizam o sistema de cotas buscarem apenas pessoas negras que trabalham que nem brancas.

As cotas foram uma vitória na nossa história, conquista de muito sangue y suor dos movimentos negros em geral, mas existem ainda muitas camadas que precisam ser debatidas para que esse sistema seja realmente reparativo para com os corpos marginalizados y excluídos pela lógica europeia ocidental padrão.

 


Fotografa Maureen Bisilliat, o menino anjo
Foto : acervo instituto Moreira Salles

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A falta de mulheres eleitas no norte brasileiro
Por Juliana Maquiné

 

Nas últimas eleições, muito tem se falado na presença de mulheres na disputa para cargos municipais e estaduais no país. Mas nas apurações de votos, fica claro a disparidade entre candidatos do sexo feminino e masculino.  No Amazonas por exemplo, nenhuma mulher foi eleita para o cargo de deputada federal, muito menos para o senado. 

De acordo com a Justiça Eleitoral, as mulheres formam maioria da população apta a votar em todo o estado, sendo 51% do total. Em 2018, 264 mulheres disputaram as eleições no Amazonas e em 2022 esse número cai para 217, representando apenas 34% das candidaturas registradas. 

O estado nunca elegeu uma mulher aos cargos de governo estadual e vice, e no Senado, somente uma foi eleita. Para a Assembleia Legislativa do Amazonas, eram 430 candidatos concorrendo a 24 cargos, sendo 140 mulheres disputando e apenas quatro foram eleitas. 

Fica claro que o discurso de ódio e patriarcado ainda resiste e ajuda na decisão eleitoral. Esse discurso, endossado pelo atual presidente, ajuda a construir esse cenário com poucas mulheres eleitas, é o que explica a enfermeira a ativista indígena, Vanda Witoto, que disputou pela primeira vez a um cargo político. “Essas estruturas foram criadas por homens, para homens e toda sua constituição se dá na perspectiva masculina. Aqui no Amazonas, os cargos majoritários são ocupados por homens.”, explica Witoto.

A falta de investimentos em campanha eleitorais de mulher, também é um dos entraves que as mulheres candidatas enfrentam. A obrigação dos partidos em distribuir 30% dos investimentos em campanhas femininas, não reflete no resultado.  De acordo com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), candidatos gastaram 88% a mais que mulheres em suas campanhas eleitorais. Isso reflete no resultado das eleições. 

No norte do Brasil, diante da vulnerabilidade social e pobreza que muitos ribeirinhos e povos indígenas vivem, o período eleitoral se tona um momento de possibilidade de conseguir algo. “Ninguém faz nada por esse povo que fica abandonado, não existe política pública. E muitos se condicionam às situações políticas que são oferecidos como a venda dos votos”, enfatiza Vanda.  

Em todo o Brasil, as mulheres são maioria do eleitorado brasileiro, com 52,65%. Porém, esse valor não corresponde à representatividade feminina no Congresso Nacional. Apesar do aumento em relação a 2018, as mulheres ainda estão longe de ocupar o mesmo número de cadeiras que os homens. Em 2022, foram eleitas 86 deputadas federais, das 513 vagas em disputa. No Senado, foram eleitas quatro senadoras de um total de 27 cadeiras em disputa.  

Esse pequeno aumento talvez demonstre que a voz das mulheres está ganhando força mas também representa um longo caminho a ser percorrido. Além de conciliar a vida pessoal, trabalho, maternidade, as mulheres têm que enfrentar uma sociedade que vê em um homem branco mais possibilidades de se ter algo em troca, e os elegem esquecendo da necessidade do coletivo. Por exemplo, quantos candidatos estão indo para o segundo turno e tem a pauta FEMININA em discussão? Quantos candidatos discutem medidas de proteção contra violência  de gênero? Quantos candidatos discutem representatividade feminina nos órgãos públicos e criação de políticas públicas? Muitas perguntas ainda acontecem quando o assunto é política. O nosso dever está aí para o próximo domingo dia 30 de outubro. 

Cotas

A lei de cotas teria estimulado ainda o fenômeno das “candidaturas fantasmas” – criadas pelos partidos para atingir a meta, mas sem investimento real de campanha. Segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), 16.131 candidatos não receberam nenhum voto nas eleições de 2016. Desse total, 90% eram do sexo feminino. Os números chamaram atenção do Ministério Público Eleitoral, que sugeriu aos promotores eleitorais que averiguassem os casos de candidatas sem voto. O protocolo envolve a investigação da existência de gastos de campanha, a pesquisa em fontes como Google e redes sociais por propaganda das candidatas e, caso a infração seja comprovada, a denúncia por falsidade ideológica eleitoral.

O trabalho (re)produtivo na indústria da moda

“O corpo das mulheres é a última fronteira do capitalismo. Imagine se as mulheres entram em greve e não produzem filhos, o capitalismo pára. Se não há controle sobre o corpo da mulher, não há controle da força de trabalho. As diferenças não são o problema, o problema é a hierarquia”. Silvia Federici. 

Dia 25 de outubro é o dia internacional contra a exploração da mulher. Data instituída como resposta à desigualdade de gênero e todas as suas ramificações. Para seguirmos nessa conversa, vamos compreender onde e como o corpo feminino vem ocupando (ou não) espaços de direito dentro da indústria da moda. 

Segundo dados do FashionUnited, a cadeia produtiva da moda é composta por algo em torno de 60 milhões de trabalhadores alocados em diferentes regiões (e condições) no mundo todo. Estima-se que, pelo menos, 85% dessa mão de obra seja constituída por mulheres [The True Cost]. É importante destacar que esse número pode ser uma expectativa baseada em acordos legais e outros relatórios, mas órgãos especializados acreditam que pode ser ainda maior, pois há irregularidades trabalhistas e falta de fiscalização contínua em locais mais vulneráveis. 

No Brasil, esse contexto se mostra ainda mais relevante. O setor é responsável por empregar, aproximadamente, 1,36 milhão de pessoas. Também é apontado como o segundo maior empregador da indústria de transformação, perdendo apenas para alimentos e bebidas (juntos) e 60% dessa classe trabalhadora é constituída por mulheres [ABIT 2021]. 

Quando direcionamos essa lente entre as diversas ocupações presentes ao longo do processo têxtil, para que possamos compreender ainda mais as facetas dessa extensa distribuição, percebemos que ainda há muito para avançarmos. 

No campo, onde são realizados os cultivos do algodão, por exemplo, cerca de 40% da força de trabalho agrícola – registrado e remunerado – é integrada por mulheres [OIT], mas apenas 15% delas detém áreas de plantação. Ou seja, acabam trabalhando na lida do dia a dia, somente como operárias em diferentes funções. De acordo com o Censo Agrícola, mulheres possuem apenas 12,7% do título das terras onde estão. A prática mais comum é que os registros estejam em nome dos homens da família. Tal cenário pode ser compreendido por conta de fatores, como falta de acesso à educação, tradição conservadora e a divisão sexual do trabalho, entre outros. 

Já no setor industrial, subsidiado por seus complexos elos produtivos e majoritariamente feminino, além do recorte de gênero, também notamos de forma latente os recortes sociais, raciais e econômicos. 

O Brasil é a maior cadeia têxtil completa do Ocidente e o estado de São Paulo é responsável por concentrar 27% dessa potência produtiva. Não é incomum que regiões como Brás e Bom Retiro se destaquem por suas centenas de facções e confecções, atraindo pessoas de países vizinhos em busca de melhores oportunidades de vida e de trabalho. Basta dar uma volta por esses endereços para percebermos que grande parte dos

negócios é mantido por imigrantes, com idades que variam entre 20 e 30 anos. Em suma, famílias inteiras que se deslocam de países latinos, como Bolívia ou Venezuela, e anseiam por novos horizontes. De acordo com o Consulado da Bolívia em São Paulo, bolivianos são a 2ª maior colônia de estrangeiros no estado – representando mais de 17 mil pessoas, entre 2000 e 2010. 

Dentre as diversas etapas que compõem a imigração, a regularização nem sempre é algo fácil de ser solucionado. Fatores como alto investimento financeiro, tempo e todas as demais burocracias que envolvem esta demanda, acabam expondo muitas dessas famílias à ilegalidade, um terreno fértil para que a informalidade possa aflorar. 

A atividade da costura costuma surgir de maneira oportuna, uma vez que pode ser de conhecimento familiar dentre as rotinas domésticas presentes nas culturas locais e acaba por facilitar a “absorção” dessa mão de obra mais rapidamente. Fator que deveria possibilitar maior geração de renda e emancipação social. Só que não! A urgência por um trabalho que mantenha as necessidades básicas do dia a dia somada à dificuldade do idioma, possível ilegalidade, e um setor produtivo que anseia por eficiência, só faz descortinar o quão vulnerável essa classe se encontra, principalmente as mulheres.

Normalmente, como forma de transcender esse status, as famílias acabam trabalhando para juntar o máximo de dinheiro que for possível e assim abrir as suas próprias oficinas. Nesse caso, a regularização acaba sendo, por muitas vezes, “um privilégio” do homem da casa, do provedor que também terá acesso ao CNPJ da empresa. 

Ao longo do tempo, as mulheres – muitas remanescentes de ambientes opressores, machistas e conservadores – seguiram ocupando suas rotinas exauridas, permeadas pelo trabalho não remunerado, como a criação de seus filhos, de familiares e de todos os que transitam pelos seus espaços comuns e compartilhados, desprovidas de acessos legais, direitos do Estado ou qualquer outra iniciativa que se faça presente e possa garantir dignidade e bem-estar. 

A falta de acesso e incentivo às mulheres negras, também é uma tendência recorrente na indústria da moda. Afinal, mulheres negras ocupam grande parte da cadeia produtiva do setor, na lavoura, na indústria, nas máquinas de costura e em tantos outros cenários, mas são a minoria quando falamos de cargos de liderança. A presença feminina em altos postos de marcas de moda gira em torno de apenas 15% se comparado à presença masculina. quando inserimos o recorte de raça e olhamos para outros setores, esse número despenca para 7% – nas contratações feitas em São Paulo, em 2020. 

Algumas pesquisas revelam que mesmo buscando por maior qualificação profissional, mulheres ainda ocupam menos cargos de lideranças em outros setores do mercado [Fashion Institute Technology] . De acordo com a Grant Thornton, apenas 38% dos cargos de liderança do Brasil são ocupados por mulheres. Um levantamento do IPSOS identificou que cerca de 03 em cada 10 pessoas admitem que se sentem “desconfortáveis” quando têm uma mulher como chefe – essa resistência se torna ainda maior entre os homens.

Essas informações só elucidam a falta de comprometimento (ou interesse?) do Estado para com políticas públicas mais eficientes e propositivas, capazes de garantir a equidade de gênero de forma real e estrutural. 

Também não podemos nos esquecer da constante exploração midiática que garante que essa poderosa engrenagem continue a funcionar, por meio de um esforço significativo para condicionar corpos femininos a cargos de menor relevância (ou poder). Afinal de contas, estamos falando sobre um sistema invariavelmente capitalista, patriarcal, operando em torno da fetichização da mercadoria (mulher) por meio de campanhas publicitárias e ações de marketing amparadas pela constante exploração imagética, de conotações sexistas. 

Como fronte a tanta violação, legitimada por uma estrutura de poder, o que pretendemos não é apenas, ou simplesmente, uma adequação na indústria da moda, mas sim uma revolução que possa assegurar a verdadeira emancipação feminina. 

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Imagem: Joice Rivas 

Escrito por Julia Codogno 

Revisado por André Teixeira 

Julia Codogno é comunicadora de moda e sustentabilidade. Desenvolve seu trabalho por meio de mentorias, palestras e conteúdos educativos. É criadora de um guia digital que reuniu mais de 200 marcas com iniciativas de impacto positivo e co-criadora do projeto Retecendo. Acompanhe @juliacodogno

4ª Edição do Fórum Fashion Revolution acontecerá em outubro

Evento híbrido contará com apresentação de ensaios teóricos aprovados e painéis de discussão sobre um futuro melhor e mais sustentável para a indústria da moda

O Fórum Fashion Revolution, teve sua primeira edição em 2017, e foi a primeira plataforma do país criada exclusivamente para fomentar a pesquisa e o debate sobre desafios e soluções sustentáveis dentro do sistema da moda. Os trabalhos inscritos foram avaliados por um Comitê Científico composto por pesquisadores de todo Brasil e os aprovados serão apresentados durante evento online nos dias 19 e 20 de outubro. Já no dia 21, na etapa presencial do evento que acontece na Unibes Cultural em São Paulo, serão realizadas mesas de debate e exposição das ilustrações aprovadas em 2022. 

Em sua última edição, em 2020, o Fórum Fashion Revolution (FFR) selecionou 78 trabalhos que abordaram os tópicos: consumo, ações coletivas, condições de trabalho e composição das roupas, entre outros, reunidos no e-book publicado que pode ser conferido aqui. Agora, em 2022, sob os temas Direitos, Relacionamentos e Revolução, serão apresentados trabalhos abordando automação e precarização do trabalho, direitos humanos na indústria da moda, racismo ambiental, valorização de trabalhos manuais, aterros sanitários, consumo de mídias, visibilidade nortista, entre outros assuntos.

O acesso à educação e aos espaços de publicação de trabalhos acadêmicos no Brasil, refletem as grandes desigualdades entre homens e mulheres, pretos e brancos, ricos e pobres, exibindo como ainda somos afetados pelo racismo estrutural e sexismo dominante. Como parte da implementação de ações afirmativas antirracistas pelo Fashion Revolution Brasil, esta edição do Fórum Fashion Revolution reservou espaço para trabalhos (ensaios teóricos e ilustrações) de autoria de pessoas autodeclaradas pretas, pardas, indígenas, quilombolas ou pessoas com deficiência.

 

De acordo com Manuel Teles, articulador acadêmico do FFR 2022, “Os estudos e práticas de decolonialidade chegam no ensino de moda no Brasil e já apresentam seus primeiros frutos na pluralidade de assuntos e novidade nas abordagens metodológicas, com pessoas curiosas em pesquisar e produzir utilizando como referências bibliográficas, autores do sul global.”

Fórum Fashion Revolution 2022: Direitos, Relacionamentos e Revolução 

Para a edição de 2022,  permanecem os eixos temáticos do edital lançado para a 4ª Edição em 2021. Associados a estes, os temas da Campanha Semana Fashion Revolution 2022 –  Dinheiro, Moda e Poder, abordando histórias ocultas por trás das roupas, o que significa o preço que pagamos pela moda e como o poder de compra pode fazer uma diferença positiva, quando pensamos em cidadãos e biodiversidade diante os conflitos e crises globais

Foram selecionados mais de 40 ensaios teóricos e 20 ilustrações para apresentação presencial e/ou digital durante o evento. O conjunto de trabalhos aprovados será publicado no formato de e-book que estará disponível para download gratuito. 

Além da apresentação dos ensaios, o Fórum contará com dois painéis online, nos dias 19 e 20 de outubro, sobre as relações da moda com o clima e a tecnologia. No dia 21 de outubro, acontecerá um evento presencial na Unibes Cultural em São Paulo. Neste evento acontecerão 3 painéis sobre as relações da moda com educação, cultura e ESG. Os convidados e programação detalhada serão divulgadas em breve.

Este será o primeiro evento presencial do Fashion Revolution Brasil desde o início da pandemia. Não perca e se inscreva como ouvinte no link http://bit.ly/forumfr22!

O e-book com os ensaios teóricos aprovados conta com registro de ISSN 2675-6560, código de registro internacional de documentos periódicos. O registro é importante, especialmente para quem busca experiência e comprovação de publicação em revistas, além de um espaço para reflexão crítica para quem está desenvolvendo pesquisa para TCCs, monografias, artigos, dissertações e teses de pós-graduação – especialização, mestrado ou doutorado. 

Serviço (Sujeito a alterações)

  • Apresentação das ilustrações e ensaios teóricos selecionados: 19 e 20 de outubro de 2022 em evento digital, no canal do youtube do Fashion Revolution Brasil, das 16 às 19:30 hrs.
  • No dia 21 de outubro de 2022 terá evento físico na Unibes Cultural, São Paulo/SP, das 10 até às 19 hrs.
  • A programação conta com a apresentação dos trabalhos selecionados, exposição das ilustrações e painéis de discussão;
  • Todos os 3 dias de evento contarão com tradução de libras;
  • Convênios com 2 hostels em São Paulo para os que vierem de fora da cidade:  Ô de Casa Hostel, código promocional FASHIONREV10, válido de 10 a 31/10 e dá direito a 10% de desconto; Lamparina Hostel, código promocional  fashionrevolution10.

O Fórum Fashion Revolution é desenvolvido pelo Instituto Fashion Revolution Brasil, apresentado pelo Ministério do Turismo, realizado em parceria com a Unibes Cultural e conta com o apoio das Lojas Pernambucanas.

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Dandara Valadares

Assessoria de imprensa 

E-mail: assessoriafashrev@gmail.com

Celular: (11) 98640-5243

FELIZ (?) DIA DA ÁRVORE
*por Rafael Silvério  
 

Eu sempre odiei ter nascido nessa data. Quantos aniversários passei com amigos me dizendo: “Feliz dia da Árvore”, ao invés do clássico “Parabéns”.

 

Por muito tempo foi um incômodo inegável, mas, com a maturidade se tornando mais ativa, fui entendendo a beleza de nascer neste dia, que é comemorado no Brasil em 21 de setembro e tem como objetivo principal a conscientização a respeito da preservação desse bem tão valioso. A data, que é diferente em outras partes do mundo, foi escolhida em razão do início da primavera, que começa no dia 23 de setembro no hemisfério Sul.

 

Existe uma magia da colisão de vários ativos trabalhando em prol da prosperidade de uma semente. Essa premissa acontece em mitologias indígenas e africanas, que justificam essa animação de todo ser vivo que floresce dentro de um processo que valoriza o coletivo. 

 

Na cosmovisão do povo Dagara (aldeia de um povo oriundo da África Ocidental, que, dentro de sua sabedoria e cultura, classifica seu povo dentro da seguinte composição: fogo, água, minerais, terra e natureza), o vento vai carregar essa semente até o solo, que já foi preparado pela chuva e está pronto para ser aquecido pelo sol no processo de incubação, fincando raízes e fazendo um esforço descomunal para nascer – seu desenvolvimento, assim como o dos humanos, depende do ambiente, às vezes se estabelece em lugar propício, às vezes não.

 

Assim como tudo que a natureza transforma e gera, o processo de transformação de qualquer muda em uma árvore é lento. Sua perpetuidade é resultado de “aleatoriedade” somada a situações que colocarão em xeque não apenas sua habilidade de adaptabilidade, mas, também, resistência em ambiente hostil (leve em consideração a crescente do desmatamento em solo nacional e a despreocupação com que o nosso (des)governo encara a situação). Então, ela se enraiza onde pode e, em busca de nutrientes para sustentar suas necessidades, muitas irão padecer por falta desses acessos dos mínimos recursos – reconhecer que além do esforço, existem os privilégios em ter oportunidades que não são para todos. 

 

As semelhanças entre humanos e árvores vão além da necessidade de solo fértil. Assim como os humanos, as árvores também têm o tempo de regenerar suas feridas. Nem todas conseguem ser superadas, há muitas que deixam cicatrizes profundas e outras que terão que ser validadas para o resto de sua jornada – talvez esse seja o fato que mais me aproxima da inteligência que nos atravessa como seres vivos, o que temos em comum. Esse exercício de empatia vivida é um método que transforma fragilidades e potências de vulnerabilidade.

 

Nos últimos tempos, temos falado muito sobre o papel da Moda, não apenas de diminuir seus impactos, mas de ser responsável por regenerar espaços lesados pela sua atuação. Esta cultura regenerativa solicita que pensemos, antes de participar dela, sobre as condições e organizações sociais. Atualmente, o meio em que vivemos é regido por convenções que se demonstram problemáticas e precisam ser repensadas.

 

Sistemas patriarcais, industrializados, separatistas e excludentes dominam o pensamento e, dessa forma, as atitudes. Há uma tentativa de mecanizar relações, sentimentos, ambientes e, inclusive, pessoas. Todos os sistemas vivos, nós inclusive, pedem o entendimento do estar presente  e de um processo de construção pautado na autoconsciência e no lugar em que estamos inseridos. Ações individuais e focadas em microambientes podem levar certo período para se tornarem hábitos e constituírem grandes transformações. 

 

Por mais ansioso que eu seja e fique lidando com a tentativa falida de acompanhar tudo, aprendi que foi e é preciso ser senhor do seu próprio tempo, mas, também saber se deixar levar, porque nem tudo é sobre nós.Neste dia, em que eu completo um ano a mais nessa existência, compartilho um pouco do que eu aprendi tendo que refletir todos os aniversários um pouco sobre outros seres – talvez, se olhar de perto, verá mais similaridade do que divergência.

 

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Rafael Silvério
Formado pela Faculdade Santa Marcelina em Desenho de Moda (2013) e pós-graduado pela UNIP em Negócios Internacionais e Comércio Exterior (2016)

(Re)costurar o presente: por que o cânhamo é uma possível alternativa para a moda zero desperdício.
*por Marina Ferro 
 

Embora reduzir, reutilizar e reciclar não sejam conceitos novos, o mundo perdeu o rumo após a Revolução Industrial. O consumo desenfreado e o desperdício se tornaram problemas crescentes, mas, felizmente, o movimento desperdício zero vem ganhando força nos últimos anos, com mais pessoas optando por viver uma vida sustentável ao adotar uma economia mais circular. 

 

A utilização do cânhamo é uma contribuição valiosa, ao oferecer soluções economicamente viáveis ​​para ajudar a enfrentar alguns dos principais desafios que nossa sociedade enfrenta atualmente, incluindo poluição, resíduos plásticos e emissões de gases de efeito estufa.

 

A verdade sobre a moda da compostagem

 

Todas as roupas compostáveis ​​são biodegradáveis, mas nem todas as roupas biodegradáveis ​​são compostáveis. A distinção entre os dois termos pode criar aterros de diferença ao se tratar da pegada ecológica de um produto. 

 

A moda biodegradável se decompõe em um processo que às vezes pode levar centenas de anos e nem sempre os materiais biodegradáveis são naturais, mantendo, assim, suas propriedades espalhadas pelo meio ambiente. Ou seja, plásticos se transformam em milhares de microplásticos espalhados pela terra, água e ar, enquanto roupas e acessórios compostáveis ​​se tornam matéria orgânica no solo em poucos meses.

 

A maioria das marcas que alegam vender produtos orgânicos e biodegradáveis ​​não incluem informações claras em suas etiquetas como o grau de degradação – que é influenciado pelos corantes químicos e materiais sintéticos, incluindo os usados ​​em etiquetas, zíperes, botões e linhas de costura. Apesar das variadas iniciativas sustentáveis ​​presentes na indústria, poucos nomes usam materiais naturais em todos os componentes de suas roupas.

 

O cânhamo é um tecido fértil e desperdício zero 

 

O cânhamo faz parte de uma revolução. O tecido feito a partir dele pode ser considerado um dos tecidos mais ecológicos disponíveis, já que é biodegradável e compostável.

 

Além disso é desperdício zero – cada parte da planta pode ser usada, incluindo as sementes que são consideradas um superalimento, bem como um derivado do óleo de cânhamo que pode ser usado como biodiesel. O cânhamo também pode reter significativamente mais carbono do que florestas e convertê-lo em biomassa. 

 

A planta não apenas pode ser usada para criar tecidos, mas também pode criar óleos, materiais de construção, alimentos, papel, remédios, cosméticos e bioplásticos, alternativas a muitos plásticos utilizados pela indústria, inclusive a da moda.

 

Apesar dos passos lentos, a moda também deu alguns passos cruciais, destacando a importância da moda desperdício zero e seu impacto na humanidade. Mas, será que podemos dizer que o cânhamo é o futuro do setor? 

 

Podemos não ver o cânhamo ainda com tanta frequência no mercado nacional, mas há muitas novidades surgindo no Brasil para novos negócios. Estamos vivendo um momento de cocriação de uma nova tendência de consumo.

 

Apesar de sua história injustamente ilícita nas últimas décadas, o cânhamo industrial, uma espécie da Cannabis Sativa que contém menos de 0,3% de TCH há alguns anos, já chegou ao legislativo no Brasil. Ativistas, pesquisadores, marcas e consumidores lutam pela regulação do cânhamo industrial no país e, aos poucos, os mitos em torno da planta são desfeitos na mesma proporção em que seus benefícios são comprovados. 

 

Já avançamos com a utilização do cânhamo para fins medicinais, como o PL 399/15, aprovado em junho de 2021. E, com o cenário legal mudando em diferentes países, o cânhamo está passando por uma evolução socioeconômica por aqui também.

 

Quanto mais investirmos no cânhamo, como produtores e consumidores, mais barato e mais difundido ele se tornará e mais benefícios socioambientais poderão ser vistos. Afinal, #CânhamoéRevolução!

O que prometem as novas tecnologias de reciclagem têxtil?
*por Eduarda Bastian
 

Foi-se o tempo em que a reciclagem têxtil dava origem somente a fibras rústicas com qualidade reduzida e que muitas vezes precisam ser misturadas com matérias-primas virgens para aplicações de maior valor. Nos últimos anos, foi possível observar o crescimento de startups focadas em técnicas inovadoras de reciclagem têxtil-a-têxtil, com o objetivo de manter a mesma qualidade de fibras virgens. 

 

Tendo em vista os graves impactos ambientais e sociais causados pela indústria têxtil em seu modelo tradicional (linear), a necessidade de mudança – em todas as etapas da cadeia produtiva – se torna cada vez mais urgente. Dentre os muitos impactos que podem ser citados, a preocupação com as montanhas de lixo têxtil em diferentes países ao redor do mundo leva a atenção de iniciativas de sustentabilidade diretamente para soluções mais circulares para tais resíduos.

 

A reciclagem têxtil se apresenta como uma das possíveis “soluções” para resíduos têxteis, indicando métodos onde teoricamente seria possível manter os materiais em uso (mesmo que em outras indústrias), ressignificando o que seria considerado lixo. 

 

Porém, a reciclagem têxtil enfrenta inúmeros desafios para que de fato seja uma opção viável, eficiente e sustentável dentro da indústria – por exemplo: problemas com logística reversa, coleta e separação, dificuldade na reciclagem de tecidos com misturas (materiais com mais de uma fibra), alto uso de energia, entre outros. Outro desafio pertinente é a qualidade das fibras recicladas. O algodão desfibrado, por exemplo, muitas vezes necessita ser misturado com fibras de algodão virgem ou poliéster para ser usado novamente no vestuário, pela perda de qualidade das fibras que ocorre no processo – além de ser menos resistente e, consequentemente, durar menos tempo. Nesse contexto, já é possível encontrar no mercado iniciativas que apresentam tecnologias que afirmam manter a qualidade virgem de fibras celulósicas após o processo de reciclagem, eliminando a necessidade da utilização de recursos virgens. Nesse processo, resíduos têxteis feitos com fibras celulósicas (como o algodão) passam por sistemas de regeneração de celulose semelhantes aos que acontecem durante a fabricação de fibras artificiais, como a viscose e liocel.

 

Uma dessas iniciativas é a tecnologia da empresa Renewcell, que dissolve resíduos de algodão e outras fibras celulósicas e transforma-os em uma nova matéria-prima, intitulada de Circulose. Circulose é uma polpa de celulose produzida pela Renewcell a partir de resíduos têxteis, que posteriormente é utilizada por outras empresas como matéria-prima para viscose e liocel (nesse caso, é obtida somente a polpa celulósica, e não as fibras prontas para fiação). A empresa Infinited Fiber trabalha com algo semelhante: fibras de celulose 100% criadas a partir de resíduos têxteis pós-consumo. Segundo a empresa, o processo cria uma nova fibra celulósica exclusiva por meio de uma química que não usa dissulfeto de carbono – uma das principais preocupações relacionadas à viscose tradicional. Para fazer a fibra, a tecnologia da empresa captura o valor dos resíduos no seu nível polimérico, dando origem a materiais de alta qualidade. As fibras são, então, usadas por empresas de fiação para a fabricação de fios têxteis.

 

Em uma abordagem mais inusitada, a empresa Ioncell utiliza, em seu processo de reciclagem têxtil, um solvente chamado líquido iônico para dissolver a celulose. De acordo com a empresa, o único produto químico utilizado no processo é o líquido iônico, além de água. Ambos são reutilizados no processo em um circuito fechado. No final, são obtidas fibras macias, fortes e aptas a variadas aplicações de vestuário. Algumas tecnologias vão ainda mais além, como a startup Ambercycle, cuja tecnologia consegue reciclar tecidos mistos de algodão e poliéster, dando origem à polpa de celulose pura resultante da reciclagem do algodão e pellets de poliéster de alta qualidade. A empresa Phoenxt também apresenta possíveis soluções para resíduos pré e pós consumos compostos de mais de um tipo de fibra, através de um processo químico livre de solventes.

 

Utilizar resíduos têxteis como fonte de matéria-prima para processos que usam a regeneração de celulose alivia o uso de recursos virgens que podem estar relacionados ao desmatamento, esgotamento do solo e uso de agrotóxicos (resultante da monocultura de eucaliptos e outras fontes de madeira). Além disso, algumas das empresas citadas evitam o uso de químicos tóxicos como o dissulfeto de carbono, hidróxido de sódio, sulfureto de sódio e dióxido de enxofre utilizados na produção tradicional da viscose. Para completar, as fibras resultantes de tais processos possuem qualidade superior ao do algodão reciclado mecanicamente, evitando a mistura com matérias-primas virgens e possibilitando a aplicação em produtos de maior valor. 

 

No entanto, deve-se exigir maior transparência de algumas das empresas citadas, especialmente sobre os químicos utilizados e aspectos relacionados ao uso de energia. Algumas das empresas trabalhando com resíduos têxteis para a regeneração de celulose possuem como produto final apenas a polpa, que quando comprada por outras empresas é usada na fabricação da viscose tradicional. Aqui, torna-se essencial a questão da rastreabilidade do material.

 

O processo tradicional da viscose está associado a diversos impactos ambientais negativos, o que deve inspirar a inovação e a busca por novas tecnologias, trocando por exemplo matérias-primas virgens como a madeira por resíduos têxteis. Empresas já consolidadas na fabricação de viscose e outras fibras artificiais como o liocel também podem contribuir para o desenvolvimento sustentável através da busca por matérias-primas já existentes, como resíduos têxteis celulósicos, em vez de utilizar recursos virgens que podem causar os impactos negativos já amplamente conhecidos de fibras artificiais tradicionais. 

 

A empresa de inovação Spinnova, por exemplo, já afirmou que através de sua tecnologia patenteada é possível transformar em fibras de qualidade qualquer resíduo ou recurso que seja feito de celulose. Porém, ao invés de investir mais em utilizar resíduos têxteis como matéria-prima, a empresa recentemente formou uma joint venture com a Suzano, uma das maiores produtoras de celulose de eucalipto do mundo. 

 

Segundo a publicação “Preferred Fiber and Materials Market Report”, emitida pela Textile Exchange em 2021, atualmente menos de um por cento das fibras artificiais é feito de matéria-prima reciclada ou outra matéria-prima alternativa. Porém, tendo em vista a quantidade de pesquisa e desenvolvimento que estão em andamento, espera-se que esse número aumente significativamente nos próximos anos. 

 

Em suma, assim como todas as últimas inovações “sustentáveis” dentro da indústria, as tecnologias de reciclagem têxtil feitas através da regeneração de celulose possuem vantagens e desvantagens – a última relacionada principalmente à falta de transparência dos inovadores – ressaltando a necessidade de um estudo mais aprofundado sobre os benefícios e impactos reais de tais métodos, assim como maior enfoque na rastreabilidade de todo o material. Mais pesquisa é necessária em relação a viabilidade e avanço de tais tecnologias, que enfrentam problemas similares aos da reciclagem têxtil tradicional (como aviamentos, tecidos mistos, contaminação, etc.).

 

Mesmo assim, pode ser considerada uma grande vantagem a redução do uso de recursos virgens florestais, que consequentemente reduz também as probabilidades de outros impactos negativos como a perda da biodiversidade e o esgotamento do solo – além de, nesse caso, trazer uma maneira de manter os materiais têxteis no ciclo produtivo da indústria têxtil.

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Eduarda Bastian – Pesquisadora e educadora na área da moda com foco em materiais, fibras e sustentabilidade. Trabalha como professora no SENAI de Santa Catarina e como presidente do comitê têxtil na Associação Nacional do Cânhamo Industrial (ANC). Oferece workshops, palestras e consultorias com o objetivo de comunicar ferramentas e conhecimentos para a necessária e urgente mudança sistêmica da indústria têxtil.

Instagram: @eduardabastian 

Berço Esplêndido
*por Rafael Silvério
 

No dia 22 de agosto foi festejado o Dia do Folclore. A origem remete ao arqueólogo William John Thoms, que nessa mesma data, em 1846, sugeriu que todo o conjunto de tradições ou “antiguidades” populares poderia ser definido pela palavra “folklore”. Unindo as palavras folk, que significa “povo”, e lore, que significa “conhecimento”. 

 

O folclore brasileiro é tão diverso quanto os brasileiros. Cada região tem suas próprias lendas, figuras folclóricas, costumes e tradições. No entanto, é possível observar que o folclore brasileiro gira em torno das lendas e figuras folclóricas, hábitos ancestrais, festas e heranças culinárias, religiosidade, crenças e fé, contos, poemas e poesias espelhando a influência de povos indígenas e africanos.

 

Esse arcabouço deveria ser fonte da maior parte da produção cultural do nosso país e permear conceitos originais que norteiam a economia criativa, não apenas perpetuando a cultura, mas também criando métodos gestacionais pautados na nossa própria história. O que impede que o Brasil olhe para si mesmo é o apagamento de nossas histórias contadas por quem de fato fez chão para que pudéssemos deitar em “berço esplêndido.”

 

Enquanto ainda somos desconhecedores da nossa própria cultura, o extrativismo colonialista resiste. Continuamos sendo fontes inspiracionais (ou de apropriação) para várias vertentes artísticas com poderio midiático de influenciar globalmente – como é o caso de Yara Flor, personagem da DC Comics.

 

Apresentada na primeira edição da Future State: Wonder Woman, criada e desenhada por Joelle Jones, Yara é uma amazona, que, logo na primeira edição, já menciona Tupã e tem cenas com Boitatá e Caipora, a Guardiã das Florestas. 

 

Até quando vamos permanecer sem proteger nossa cultura, do Brasil Profundo? Sem reconhecer todas as riquezas que podem ser fontes de autenticidade? Quem se beneficia com a síndrome de vira lata do brasileiro?

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Rafael Silvério
Formado pela Faculdade Santa Marcelina em Desenho de Moda (2013) e pós-graduado pela UNIP em Negócios Internacionais e Comércio Exterior (2016)