O que prometem as novas tecnologias de reciclagem têxtil?
*por Eduarda BastianFoi-se o tempo em que a reciclagem têxtil dava origem somente a fibras rústicas com qualidade reduzida e que muitas vezes precisam ser misturadas com matérias-primas virgens para aplicações de maior valor. Nos últimos anos, foi possível observar o crescimento de startups focadas em técnicas inovadoras de reciclagem têxtil-a-têxtil, com o objetivo de manter a mesma qualidade de fibras virgens.
Tendo em vista os graves impactos ambientais e sociais causados pela indústria têxtil em seu modelo tradicional (linear), a necessidade de mudança – em todas as etapas da cadeia produtiva – se torna cada vez mais urgente. Dentre os muitos impactos que podem ser citados, a preocupação com as montanhas de lixo têxtil em diferentes países ao redor do mundo leva a atenção de iniciativas de sustentabilidade diretamente para soluções mais circulares para tais resíduos.
A reciclagem têxtil se apresenta como uma das possíveis “soluções” para resíduos têxteis, indicando métodos onde teoricamente seria possível manter os materiais em uso (mesmo que em outras indústrias), ressignificando o que seria considerado lixo.
Porém, a reciclagem têxtil enfrenta inúmeros desafios para que de fato seja uma opção viável, eficiente e sustentável dentro da indústria – por exemplo: problemas com logística reversa, coleta e separação, dificuldade na reciclagem de tecidos com misturas (materiais com mais de uma fibra), alto uso de energia, entre outros. Outro desafio pertinente é a qualidade das fibras recicladas. O algodão desfibrado, por exemplo, muitas vezes necessita ser misturado com fibras de algodão virgem ou poliéster para ser usado novamente no vestuário, pela perda de qualidade das fibras que ocorre no processo – além de ser menos resistente e, consequentemente, durar menos tempo. Nesse contexto, já é possível encontrar no mercado iniciativas que apresentam tecnologias que afirmam manter a qualidade virgem de fibras celulósicas após o processo de reciclagem, eliminando a necessidade da utilização de recursos virgens. Nesse processo, resíduos têxteis feitos com fibras celulósicas (como o algodão) passam por sistemas de regeneração de celulose semelhantes aos que acontecem durante a fabricação de fibras artificiais, como a viscose e liocel.
Uma dessas iniciativas é a tecnologia da empresa Renewcell, que dissolve resíduos de algodão e outras fibras celulósicas e transforma-os em uma nova matéria-prima, intitulada de Circulose. Circulose é uma polpa de celulose produzida pela Renewcell a partir de resíduos têxteis, que posteriormente é utilizada por outras empresas como matéria-prima para viscose e liocel (nesse caso, é obtida somente a polpa celulósica, e não as fibras prontas para fiação). A empresa Infinited Fiber trabalha com algo semelhante: fibras de celulose 100% criadas a partir de resíduos têxteis pós-consumo. Segundo a empresa, o processo cria uma nova fibra celulósica exclusiva por meio de uma química que não usa dissulfeto de carbono – uma das principais preocupações relacionadas à viscose tradicional. Para fazer a fibra, a tecnologia da empresa captura o valor dos resíduos no seu nível polimérico, dando origem a materiais de alta qualidade. As fibras são, então, usadas por empresas de fiação para a fabricação de fios têxteis.
Em uma abordagem mais inusitada, a empresa Ioncell utiliza, em seu processo de reciclagem têxtil, um solvente chamado líquido iônico para dissolver a celulose. De acordo com a empresa, o único produto químico utilizado no processo é o líquido iônico, além de água. Ambos são reutilizados no processo em um circuito fechado. No final, são obtidas fibras macias, fortes e aptas a variadas aplicações de vestuário. Algumas tecnologias vão ainda mais além, como a startup Ambercycle, cuja tecnologia consegue reciclar tecidos mistos de algodão e poliéster, dando origem à polpa de celulose pura resultante da reciclagem do algodão e pellets de poliéster de alta qualidade. A empresa Phoenxt também apresenta possíveis soluções para resíduos pré e pós consumos compostos de mais de um tipo de fibra, através de um processo químico livre de solventes.
Utilizar resíduos têxteis como fonte de matéria-prima para processos que usam a regeneração de celulose alivia o uso de recursos virgens que podem estar relacionados ao desmatamento, esgotamento do solo e uso de agrotóxicos (resultante da monocultura de eucaliptos e outras fontes de madeira). Além disso, algumas das empresas citadas evitam o uso de químicos tóxicos como o dissulfeto de carbono, hidróxido de sódio, sulfureto de sódio e dióxido de enxofre utilizados na produção tradicional da viscose. Para completar, as fibras resultantes de tais processos possuem qualidade superior ao do algodão reciclado mecanicamente, evitando a mistura com matérias-primas virgens e possibilitando a aplicação em produtos de maior valor.
No entanto, deve-se exigir maior transparência de algumas das empresas citadas, especialmente sobre os químicos utilizados e aspectos relacionados ao uso de energia. Algumas das empresas trabalhando com resíduos têxteis para a regeneração de celulose possuem como produto final apenas a polpa, que quando comprada por outras empresas é usada na fabricação da viscose tradicional. Aqui, torna-se essencial a questão da rastreabilidade do material.
O processo tradicional da viscose está associado a diversos impactos ambientais negativos, o que deve inspirar a inovação e a busca por novas tecnologias, trocando por exemplo matérias-primas virgens como a madeira por resíduos têxteis. Empresas já consolidadas na fabricação de viscose e outras fibras artificiais como o liocel também podem contribuir para o desenvolvimento sustentável através da busca por matérias-primas já existentes, como resíduos têxteis celulósicos, em vez de utilizar recursos virgens que podem causar os impactos negativos já amplamente conhecidos de fibras artificiais tradicionais.
A empresa de inovação Spinnova, por exemplo, já afirmou que através de sua tecnologia patenteada é possível transformar em fibras de qualidade qualquer resíduo ou recurso que seja feito de celulose. Porém, ao invés de investir mais em utilizar resíduos têxteis como matéria-prima, a empresa recentemente formou uma joint venture com a Suzano, uma das maiores produtoras de celulose de eucalipto do mundo.
Segundo a publicação “Preferred Fiber and Materials Market Report”, emitida pela Textile Exchange em 2021, atualmente menos de um por cento das fibras artificiais é feito de matéria-prima reciclada ou outra matéria-prima alternativa. Porém, tendo em vista a quantidade de pesquisa e desenvolvimento que estão em andamento, espera-se que esse número aumente significativamente nos próximos anos.
Em suma, assim como todas as últimas inovações “sustentáveis” dentro da indústria, as tecnologias de reciclagem têxtil feitas através da regeneração de celulose possuem vantagens e desvantagens – a última relacionada principalmente à falta de transparência dos inovadores – ressaltando a necessidade de um estudo mais aprofundado sobre os benefícios e impactos reais de tais métodos, assim como maior enfoque na rastreabilidade de todo o material. Mais pesquisa é necessária em relação a viabilidade e avanço de tais tecnologias, que enfrentam problemas similares aos da reciclagem têxtil tradicional (como aviamentos, tecidos mistos, contaminação, etc.).
Mesmo assim, pode ser considerada uma grande vantagem a redução do uso de recursos virgens florestais, que consequentemente reduz também as probabilidades de outros impactos negativos como a perda da biodiversidade e o esgotamento do solo – além de, nesse caso, trazer uma maneira de manter os materiais têxteis no ciclo produtivo da indústria têxtil.
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Eduarda Bastian – Pesquisadora e educadora na área da moda com foco em materiais, fibras e sustentabilidade. Trabalha como professora no SENAI de Santa Catarina e como presidente do comitê têxtil na Associação Nacional do Cânhamo Industrial (ANC). Oferece workshops, palestras e consultorias com o objetivo de comunicar ferramentas e conhecimentos para a necessária e urgente mudança sistêmica da indústria têxtil.
Instagram: @eduardabastian