O fio do algodão costura escravidão, colonialismo e moda

By Fashion Revolution Brazil

3 years ago

por Iara Vidal*

De todo o algodão produzido no mundo, 60% são destinados à fabricação de roupas e 75% dessa parcela são consumidos por marcas europeias e estadunidenses. De todo o território agricultável do mundo, 2,4% são destinados ao cultivo de algodão. O modelo predominante é a monocultura, não por acaso, segundo o Pesticide Action Network UK, 6% de todo o pesticida e 16% de todo o inseticida do planeta são utilizados para garantir a alta produção dessa matéria-prima.

A produção da fibra natural mais consumida no mundo é liderada pela Índia. Ao lado do Brasil, Estados Unidos e Austrália, o país é responsável por 76% de todas as exportações mundiais (Abrapa). Um exército de 350 milhões de agricultores e agricultoras trabalham nos campos algodoeiros indianos sob o comando de grandes companhias que detêm o monopólio de sementes de diversas culturas, em especial do algodão.

É da Índia que vem uma das vozes mais potentes do ativismo ambiental do século 21, a da cientista e ativista ambiental Vandana Shiva. Ela é fundadora da organização não governamental Navdanya, que promove a biodiversidade de sementes, a agricultura biológica e os direitos dos agricultores na Índia.

Desde 1984 Vandana se dedica a enfrentar a indústria química que veio dos laboratórios de Adolph Hitler e dos campos de concentração nazistas, e que além dos gases venenosos, trouxe uma agricultura química e a chamada ‘Revolução Verde’. A Índia foi o cenário da primeira experiência de uso de agrotóxicos no estado de Punjab. Hoje, é uma terra arruinada, os solos e as águas desapareceram.

Vandana é autora do livro Violência da Revolução Verde no qual denuncia que, em certa altura, a antiga indústria química passou a defender a necessidade de deter a propriedade das sementes, porque não estavam lucrando o suficiente com a venda de produtos químicos.

“E a única maneira de possuir as sementes é com as sementes geneticamente modificadas, para que pudessem alegar que inventaram algo, pedir uma patente, cobrar royalties aos agricultores. Mas ninguém inventa a vida. Para mim, foi muito claro que havia um processo de colonização na base disto tudo”, analisou Vandana em entrevista ao Público, veículo de imprensa da Portugal, em novembro de 2019.

Vandana observou, a partir da compra da Monsanto pela Bayer, padrões de propriedade que revelam como empresas têm colonizado o mundo. A maioria das ações dessas companhias não pertence a indivíduos, mas às empresas de gestão de ativos dos maiores bilionários, como a BlackRock e a Vanguard.

“São empresas que valem trilhões de dólares e que estão a financiar a queima da Amazônia. Eles querem negociar as funções da natureza e isso chama-se “financeirização”[…] Então, percebi: este é um mundo novo, mas é o mundo antigo. Estamos perante os mesmos padrões da colonização”, compara Vandana.

Assim como nos primórdios do capitalismo o algodão estava no centro da questão, mais uma vez a planta é um dos carros chefes de um jeito mais cruel e desumano de capitalismo turbinado pelo neoliberalismo e com uma nova roupa para o colonialismo. Exemplo disso é a atuação de Bill Gates em África. Tido como um filantropo que ajuda países do continente africano, o bilionário está costurando uma Aliança para uma Revolução Verde no continente.

Vandana apontou que 50% dos milhetes nutritivos desapareceram do continente africano por causa da Revolução Verde patrocinada por Gates. Segundo a ativista indiana, foi o bilionário estadunidense que forçou a reescrita das leis de sementes para tornar ilegal guardá-las. O objetivo, explicou Vandana, é consolidar um monopólio de sementes, que ao mesmo tempo é um monopólio de produtos químicos.

Vandana fez uma síntese da luta anticapitalista. “Tivemos movimentos libertários para lutar contra a tomada de posse das nossas terras, contra a tomada de posse dos nossos corpos, o movimento antiabolicionista por causa dos escravos, e nos livramos dessas coisas. Começamos a lutar contra as empresas de produtos químicos, o que chamo “cartel do veneno”, nos anos 80. Hoje, já conseguimos estabelecer no mundo que a agricultura ecológica é superior à química. O movimento que mais está a crescer no mundo é a agricultura biológica, apesar de toda a propaganda. Nós ganhamos, na prática.”

A história do algodão

A planta Gossypium malvaceae e a produção do tecido que hoje chamamos de algodão tem mais de 5 mil anos. A sua manufatura, usando pentes primitivos e fusos manuais, parece ter sido descoberta de forma independente em quatro locais distintos em todo o mundo, mais ou menos na mesma época: no vale hindu do atual Paquistão, na Etiópia, ao longo da costa do Pacífico da América do Sul e em algum lugar na América Central.

Em O poder inovador da diversão – como o prazer e o entretenimento mudaram o mundo, Steve Johnson registra que a utilidade das fibras do algodão parece ter se tornado aparente para qualquer civilização suficientemente avançada situada em ecossistemas em que a planta cresce naturalmente. “Algumas dessas primeiras civilizações deixaram de inventar a escrita ou veículos sobre rodas, mas conseguiram encontrar um jeito de transformar as finas fibras da bola de algodão em tecidos macios e arejados”, escreve.

Até os anos 1600, tecidos de algodão eram quase míticos para a maioria dos europeus do norte, que usavam roupas mais grossas e ásperas de lã ou linho. Mas na Índia, depois de milhares de anos de experiências, os tingidores da costa de Coromandel criaram um elaborado sistema de impregnar de tinturas vibrantes como garança (do amarelo ao vermelho escuro) e índigo (azul) no tecido, usando fixadores como suco de limão, urina de cabras, excremento de camelo e sais metálicos. Bem diferente do que era produzido na Europa, que perdia a pigmentação depois de poucas lavagens, os tecidos indianos – o chintz e a chita – retinham a cor indefinidamente.

Quando trouxe uma carga de têxteis com sua expedição pioneira de 1498 ao redor do cabo da Boa Esperança, Vasco da Gama deu aos europeus a primeira experiência real com os  estampados vívidos e as texturas da chita e do chintz.

Como tecidos, a chita e o chintz entraram para a rotina dos costumes europeus pela decoração de interiores. A partir dos anos 1600, londrinos bem de vida e habitantes de outras poucas cidades da Europa começaram a decorar as casas com os padrões florais e geométricos com tecidos de chita. Como vestimenta, de início o algodão foi considerado leve demais para o clima do norte da Europa, principalmente no inverno.

Nas últimas décadas do século 17 um estranho círculo de retroalimentação começou a ressoar entre a elite da moda da sociedade londrina. Todos começaram a ansiar por usar algodão em seus corpos. Cortinas eram cortadas e convertidas em vestidos, sofás eram dilacerados e transformados em jaquetas ou blusas. Talvez o mais importante, roupas de baixo feitas de algodão, que podiam ser usadas nas profundezas do inverno e isolavam a pele das irritações da lã, se tornaram elemento essencial do guarda-roupa de uma dama.

O surto de interesse por têxteis indianos foi um tremendo impulso para a Companhia das Índias Orientais, que importou 250 mil peças em 1664 e passou a importar 1,76 milhão vinte anos depois. No auge da euforia, mais de 80% do comércio da companhia era dedicado à chita.

Entre 1750 e 1769, a exportação britânica de tecidos de algodão aumentou mais de 10 vezes, cita Eric Hobsbawm em A Era das Revoluções (1789-1848). O historiador marxista explica que a indústria algodoeira britânica tinha originalmente se desenvolvido com um subproduto do comércio ultramarino.

O comércio colonial criou a indústria algodoeira e continuava a alimentá-la. No século 18 ela se desenvolveu perto do centro de comércio de escravos, Bristol, Glasgow e, principalmente, Liverpool, os mais importantes portos coloniais da Inglaterra. “O algodão e a escravidão marcharam juntos”, aponta Hobsbawm. A indústria algodoeira era estimulada por cada fase desse comércio desumano, mas sempre em rápida expansão.

A indústria algodoeira reunia excelentes condições para tentar empresários privados a se lançarem na aventura da Revolução Industrial. Os inventos que revolucionaram esse setor, como a máquina de fiar, o tear movido a água, a fiadeira automática, o tear a motor, eram simples e baratos. A expansão dessa atividade também podia ser facilmente financiada. “Podiam ser instalados, se necessário peça por peça, por homens que começavam com algumas libras, emprestadas”, afirma Hobsbawm.

Além disso, toda a matéria-prima para a nascente indústria têxtil – o chão de fábrica da indústria da moda – vinha das colônias no exterior. O suprimento podia ser expandido por que eram oferecidos aos brancos nas colônias: a escravidão e a abertura de novas áreas de cultivo. 

O historiador britânico avalia como correta a perspectiva que viu a história da revolução industrial britânica a partir do algodão. O poder de transformação da indústria algodoeira era menor do que, por exemplo, de uma cervejaria, que exigia investimentos técnicos e inovações mais avançadas, mas que impactava muito pouco a economia à sua volta. As demandas da indústria algodoeira para crescer estavam disponíveis: as atividades nas novas áreas industriais, máquinas, inovações químicas, eletrificação industrial, uma frota mercante.

Em 1833, um milhão e meio de pessoas eram empregadas direta e indiretamente pela indústria algodoeira, outras indústrias como alimentos e bebidas não empregavam nem perto disso.

Outro ponto crucial para o algodão ter sido o carro-chefe para a Revolução Industrial foi a assombrosa expansão da indústria algodoeira e sua contribuição para o crescimento econômico da Grã-Bretanha até a década de 1830. A quantidade de algodão bruto importada pelos ingleses subiu de 11 milhões de libras-peso, em 1785, para 588 milhões em 1850. A produção de tecidos passou de 40 milhões para 2,025 bilhões de jardas.

Os produtos de algodão representavam entre 40% e 50% do valor anual declarado de todas as exportações britânicas entre 1816 e 1848. “Se o algodão florescia, a economia florescia, se ele caía, também caía a economia,” pontua Hobsbawm.

Que o algodão mudou o mundo é indiscutível. A questão mais interessante é de como surgiu esse intenso apetite pelo algodão capaz de alimentar e impulsionar a Revolução Industrial e a modernidade. Para além das condições materiais e históricas que Hobsbawm pontua, é preciso considerar também o sistema da moda, no qual a indústria algodoeira –do cultivo ao beneficiamento –e a têxtil e de confecção estão inseridas.

Figurinos e vestimentas vêm impulsionando inovações tecnológicas desde o começo da existência humana. Tesouras, agulhas de costura e raspadeiras para converter peles de animais em cobertas e proteção para o corpo estão entre as mais antigas ferramentas resgatadas da Era Paleolítica. Nossos ancestrais de 50 mil anos atrás produziam vestimentas com o objetivo de se manter aquecidos, secos e protegidos de potenciais ameaças.

Só que a moda não existia antes do sistema capitalista. Como explica Gilles Lipovetsky no clássico O Império do Efêmero, só a partir da Idade Média é possível reconhecer a ordem própria da moda como um sistema com metamorfoses incessantes, movimentos bruscos e extravagâncias. “A renovação das formas se torna um valor mundano, a fantasia exibe seus artifícios e seus exageros na alta sociedade, a inconstância em matéria de formas e ornamentações já não é exceção mas regra permanente: a moda nasceu”, criva o filósofo francês.

A moda é um produto da sociedade burguesa. Ao longo de cinco séculos, da metade do Século XIV até metade do Século XIX, se desenvolveu a fase inaugural da moda, em um estágio artesanal e aristocrático, junto com o florescimento da burguesia. Só na segunda metade do século XIX a moda no sentido moderno se instalou.

A Moda tem sido um espelho icônico das reviravoltas, avanços e recuos do sistema capitalista. Isso ocorre desde o primeiro giro da Revolução Industrial, quando abandonamos o modo artesanal de fazer roupas, graças ao carvão como energia e ao tear como modo mecânico de produção. Passou pelo segundo, com a energia elétrica e a máquina de costura. Pelo terceiro, com o salto da indústria química pós-Segunda Guerra Mundial, que trouxe o poliéster e o nylon. E chegou ao quarto giro, agora, a época dos algoritmos, da automação, da internet das coisas e da obsolescência da mão de obra humana.

O algodão é um dos fios condutores dessa história da moda e do capitalismo. A indústria fashion, por reunir todos os atributos para fazer prosperar o grande capital(culto a fantasias (fetiches) e novidades, instabilidade, temporalidade e efemeridade), como definiu Lipovetsky. É a filha predileta do capitalismo.

Assim como existiu o colonialismo nos primórdios da era industrial e do modo de produção capitalista, com a quarta revolução em curso surgem novas roupagens para velhos problemas. E a partir da moda é possível observá-los.

Sobre os ombros da agricultura ecológica talvez repouse a maior parcela da esperança para uma revolução radical da moda, que atinja o coração dessa filha predileta do capitalismo: o modo de cultivo da sua principal matéria-prima. O caminho é longo, difícil e árduo.

A boiada dos agrotóxicos

Apenas nos dois anos de meio do governo de Jair Bolsonaro já foram aprovados mais de mil tipos de agrotóxicos, vários deles proibidos em outros países pelos enormes danos causados à saúde. A diretora educacional do Fashion Revolution, Eloísa Artuso, escreveu um artigo para este blog há algumas semanas sobre o movimento Moda sem Veneno, uma ação por meio da parceria entre as organizações Fashion Revolution, Modefica e Rio Ethical Fashion. Leia aqui

O Brasil se mantém entre os cinco maiores produtores mundiais de algodão, ao lado de países como China, Índia, EUA e Paquistão. O país é também o maior mercado mundial de agrotóxicos do planeta e o algodão é a quarta cultura que mais consome agrotóxicos e é responsável por aproximadamente 10% do volume total de pesticidas utilizado nos solos brasileiros. Entre os agrotóxicos mais utilizados está o glifosato, que pode causar diversos efeitos adversos à saúde, como aborto espontâneo e câncer.

Em resposta a esse cenário envenenado, o agronegócio criou uma história bela e cheia de contradições. O movimento Sou de Algodão, uma iniciativa da Associação Brasileira dos Produtores de Algodão (Abrapa) e do Instituto Brasileiro do Algodão (IBA) foi criado em 2016 “para despertar uma consciência coletiva em torno da moda e do consumo responsável”. A iniciativa apresenta o Brasil como o maior fornecedor de algodão sustentável do mundo.

O algodão “sustentável” é aquele que recebe a certificação nacional ABR e o licenciamento internacional da Better Cotton Initiative (BCI). Apesar desse selo considerar quase 200 critérios, não considera o modelo de propriedade fundiária onde é cultivada a fibra. A realidade é que no Brasil a cotonicultura é praticada em gigantescos latifúndios concentrados especialmente no Cerrado. O cultivo algodoeiro é intercalado com a soja e o milho, prática que destrói o solo, utiliza sementes transgênicas (também nocivas ao solo), e expulsa comunidades de seus territórios originais devido à forte mecanização do setor.

Há ainda a alternativa do algodão orgânico, cultivado sem o uso de agroquímicos e sementes geneticamente modificadas. Já o algodão agroecológico dá um passo além: é cultivado sem agrotóxicos nem sementes transgênicas, mas também é plantado em consórcios agroalimentares. Ou seja, há um manejo integrado e cuidado com os recursos hídricos, o ar e a nutrição do solo. Do ponto de vista cultural, social e econômico, o algodão agroecológico incentiva ainda a agricultura familiar.

Iara – é representante do Fashion Revolution em Brasília, jornalista e pesquisadora independente dos encontros da moda com a política.