Não Podemos Esperar Que Seja o Consumidor a Salvar o Mundo

By Salomé Pimentel Areias

3 years ago

Sabias que para fazer uma simples T-shirt são necessários 2700 litros de água? Sim, é uma verdade chocante. Mas a forma redutora como ela é transmitida esconde uma narrativa perversa.

O desperdício de água é um problema gigante e global, intimamente ligado a negociações políticas e às leis do comércio internacional. O mesmo é, quase sempre, desintegrado e reduzido ao ponto de vista do consumidor, desviando a atenção daqueles que realmente são os responsáveis pela produção de biliões de t-shirts por ano e que detêm o poder sobre o problema relevante. Esta é uma simples fórmula que retira os responsáveis da equação final.

Cada um de nós, enquanto consumidor, dispõe do poder individual para decidir de entre uma panóplia de escolhas. Contudo, não somos nós que decidimos quais as opções que temos ao nosso dispor e que estarão, à partida, disponíveis. Hoje em dia é, o mercado encontra-se “infestado” de um monopólio de opções e “soluções” tóxicas que, por sua vez, são uma consequência da liberalização não regulada dos mercados.

Enquanto consumidores é normal que já tenhamos sentido a responsabilidade, maior ou menor, pela crise climática. Acontece que é pouco provável que a mudança ocorra através do ato de comprar (ou não comprar). É necessário justapor esta narrativa liberal com o nosso ativismo pela justiça climática e social.

O mesmo acontece em relação à chamada “pegada carbónica”: pega-se na totalidade de emissões de uma indústria ou corporação inteira e divide-se por consumíveis, por distância, ou por comportamentos que possam ser mensuráveis num espectro individual, como se o consumidor tivesse poder sobre a forma como os produtos que compra são produzidos. Em boa verdade, nem o consumidor tem esse poder, nem a maioria dos consumidores tem noção de como funciona a produção em larga escala da sua roupa.

E não é que o mercado esteja cheio de alternativas ao fast-fashion – porque não está – mas mesmo que o consumidor tivesse variedade e inerente poder de escolha, ainda assim teria de saber que existem problemas com algumas marcas. Isto requer disponibilidade e tempo para se informar, acesso a essa informação, autonomia crítica, e acima de tudo, algum cinismo face às instituições que deveriam estar, à partida, a proteger os interesses do consumidor (e cidadãos).

Até poderíamos dizer que as marcas de fast-fashion não deveriam ser responsabilizadas, porque estão apenas a corresponder ao nível de procura dos consumidores. Contudo, nem mesmo este discurso faz sentido uma vez que estas marcas produzem quantidades muito acima dos tais níveis de procura, como regra base.

A sobreprodução é, não só esperada, como encorajada por ambiciosos objetivos de vendas, contando com o sucesso dos saldos, altamente rentável, e a incineração de toneladas de roupa não vendida todos os anos. Estas estratégias rendem a estas marcas centenas de milhões, senão biliões de euros, anualmente.

Os modelos de negócio fast-fashion, num sistema capitalista, não se podem dar ao luxo de não aumentar a produção, encurtando cada vez mais a obsolescência percebida, produzindo cada vez mais quantidade, num espaço de tempo cada vez mais curto, por um preço de custo cada vez mais baixo. Isto implica usar matéria-prima cada vez mais barata, extraída com métodos cada vez mais nocivos, e com cada vez menos proteção laboral. É pela mesma razão que se omitem as más práticas, revelando apenas as positivas – o princípio básico da estratégia chamada greenwashing.

Em vez de procurar culpados, concentremo-nos em reconhecer primeiro que este sistema económico onde todos estamos não é compatível com a reversão da crise climática nem com a dignidade humana. A mudança terá de ser sistémica, em vez de ser conduzida pelo consumo. Desde o consumo individual (que é o que tem menor impacto), ao ativismo, às emissões de gases com efeito de estufa de grandes corporações, à criação de leis, todos temos de optimizar diferentes níveis de poder e impacto para um bem comum: a sobrevivência e o bem-estar de todos.

Depois de tudo isto, atenta:

Se alguém disser que

  • para fazer uma única T-shirt são necessários 2.7 m3 de água

Entende que:

  • Só em 2013, e só na Índia, foram usados 38 biliões de m3 de água apenas na produção do algodão que foi exportado – uma quantidade que abasteceria 85% da população por um ano, quando 100 milhões de Indianos não têm sequer acesso a água potável.

Se alguém disser que:

  • uma máquina de roupa pode libertar até 700,000 microfibras de plástico,

Entende que:

  • 60% de toda a roupa no mundo hoje em dia é feita de materiais plásticos (poliéster, nylon, acrílico, etc.). São necessários 342 milhões de barris de petróleo anualmente para produzir esses 60% de plástico, e estudos prevêm que estes números possam triplicar até 2050.

Se alguém disser que:

  • Estender a vida de uma peça de roupa por 9 meses reduz o impacto carbónico em 30%

Entende que:

  • As emissões carbónicas da indústria têxtil (cerca de 2.1 biliões de toneladas métricas, ou 4% do global total) ultrapassam as emissões carbónicas de todos os voos e transporte marítimo juntos. Para além de subirem as temperaturas globais, a sua toxicidade afecta maioritariamente os países de produção cuja economia depende da exportação de roupa para marcas ocidentais.