ECOANSIEDADE

By Fashion Revolution Brazil

7 months ago

Precisamos falar de hábitos e crenças de moda e consumo que precisam ser regenerados para a cura de um sistema adoecido.


por Paula Costa


Esses dias lia sobre a Síndrome de Stendhal, distúrbio psiquiátrico provocado pelo deslumbramento de turistas ao imergir na riqueza artística de Florença, na Itália. Segundo levantou a BBC, anualmente cerca de 20 turistas são diagnosticados com esta síndrome, relatando sintomas próximos ao de ataques de pânico e cardíaco. Outros destinos e ocasiões de despertar sensorial e emocional provocam reações nesta mesma linha, como a “Síndrome de Paris”, popular entre turistas japoneses que se decepcionam com a experiência de visitar Paris, em relação as expectativas alimentadas à distância, através da mídia, em torno da cidade luz. No Brasil, é comum ouvirmos relatos curiosos de fieis ao chegarem em Aparecida do Norte, muitas vezes para o cumprimento de promessas. E claro, aqui a religião entra como mais uma camada complexa e de forte apelo emocional. 

Este tema abre diversas vias de reflexão, considerando algumas já calejadas. Como exemplo, podemos pensar em como os relacionamentos digitais e a criação de universos virtuais, refletem na crise da desconexão que vivemos em sociedade. Somando a outras variáveis, a atratividade do digital nos afasta do mundo real, obcecados pela ausência de fricção de jornadas digitais, começamos a perder o jogo de cintura para lidar com a quebra de expectativas de todas as esferas da vida – relacionamentos, trabalho, estudos, etc. O que não quer dizer que, justamente as facilidades e aceleração da digitalização, não possam nos ajudar com os desafios “da vida como ela é” – alô revisão de processos mecanizados obsoletos!

Entre tantas reflexões possíveis deste contexto, meu mergulho está no despertar sensorial, porque foi a grande provocação que senti na pele no último mês, em passagem pela Islândia, conhecida como a terra do fogo e do gelo. Este destino fez parte do meu roteiro no ano que tenho a “REGENERAÇÃO” como palavra chave de exploração da Jornada da Economia da Paixão. E como a própria palavra “jornada” propõem, este processo de pesquisa através do qual absorvo insights para a aplicação em projetos de inovação, parte de um campo experiencial pessoal, de modo que os aprendizados nascem de dentro para fora – começam transformando a mim mesma para que possa levar para os meus espaços de pertencimento (relações pessoais, profissionais, artigos, aulas, projetos e outras criações).

Na intencionalidade, a exploração da regeneração na Islândia começaria ainda no avião, na observação da sequência de intervenções humana no país mais desmatado da Europa

Desde a década de 1950, a Islândia investe em estratégias de regeneração para converter os impactos de um dos legados dos vikins: a extração de quase 100% das árvores da ilha. Claro, é inevitável observar campos desérticos lá do alto, mas na prática, confiando na intuição para ver, ouvir e sentir o que precisa chegar, me perdi mesmo foi nas nuvens do céu, digerindo e resgatando aprendizados do evento “The___Dream”, tradução para “O Sonho”, que vivenciei em Portugal, em junho neste último artigo, trouxe um pouco sobre esta passagem. 


Imagem de arquivo pessoal

Desde a longa caminhada na terra até o ponto de observação da erupção do vulcão na montanha de Litli Hrutur, na capital da Islândia – o despertar inesperado e incontrolável do vulcão pelo ser humano, já traz boas provocações –, passando por cachoeiras, piscinas termais e outras cenas da ilha que me possibilitaram o contato com os 4 elementos da natureza, sentindo intimamente ser parte e abrigar cada um deles, me evocou algumas das falas que ouvi de Olivia Lazard durante o The___Dream. Esbarrando na complexidade geopolítica e de conflitos e fragilidades no geral associados às mudanças climáticas, Lazard conduz um trabalho de pesquisa e ativismo absolutamente relevante e coloca algo como: 

“As pessoas que lidam com essas complexidades [relacionadas às mudanças climáticas] todos os dias, que são minoria, são levadas a se sentirem como “Cassandras enlouquecidas”. Me sinto desta forma há muito tempo e isso não é saudável. Mas a loucura não vem destas pessoas que tentam apontar a verdade, mas de uma sociedade míope.” 


Imagem de arquivo pessoal – Durante a sua apresentação no festival The___Dream, realizado pela House of Beautiful Business em Portugal em junho de23, Olivia Lazard distribuiu fotos para ilustrar as pesquisas de impacto ambiental que mencionou. Buscando consistência autentica entre conceito e prática, o evento não contou com telas para as exposições, tudo foi compartilhado de forma analógica e próxima, em rodas de conversa pouco hierarquizadas, seguindo uma linha de  “método socrático” de educação. 

A ativista e autora do livro “It’s Not Just You: How To Navigate Eco-Anxiety and the Climate Crisis”, Tori Tsui, está entre questionadores do uso do termo “eco-ansiedade”, definida pelo medo crônico causado pelas mudanças climáticas

Este termo também é vivo no vocabulário de Olivia Lazard e está diretamente relacionado a consciência ancestral e a visão de longo prazo que também trouxe no último artigo ao falar sobre saúde mitocondrial – em resumo, nossos organismos inflamados por um estilo de vida doentio, reflete e condiciona a também doença e insustentabilidade de todo ecossistema. Para Tsui, o termo “eco-ansiedade”, está associado exclusivamente ao meio ambiente e a uma lente ocidental, não incluindo pessoas e frentes culturais e sociais da sustentabilidade. Abraço o questionamento, mas também busco desapego de rótulos, acreditando que precisamos explorar mais o seu conteúdo, isto é, o diálogo que conecta crise de saúde mental e crise ambiental. 

Com todo deslumbramento e conforto que o contato com a natureza provoca, imersões como esta na Islândia, me trazem um misto de revolta, tristeza e vazio. Ali o estilo de vida pouco sustentável que estabelecemos conflita com a consciência experiencial de cura e de conexão da natureza e a tendência é ativar a “Cassandra enlouquecida” mencionada por Olivia Lazard, até voltar para a rotina, já mais afastada da abundância da natureza, onde me deparo com o desafio da prática sustentável consistente. No entanto, a cobrança por mudanças como premissa de sobrevivência segue onipresente e assim, recebo um grande convite à eco-ansiedade.  

Buscamos válvulas de escape para anestesiar a culpa que intensifica a eco-ansiedade diariamente

Quando, por exemplo, promovemos medidas sustentáveis. Este mês o Walmart anunciou uma parceria com uma startup da Califórnia para aplicar uma tecnologia capaz de transformar dióxido de carbono, capturado da própria cadeia de produção, em fios de roupa. Enquanto as metas do ESG imperam na esfera privada, a visão da regeneração também evolui nas frentes públicas. Nos Estados Unidos, Atlanta, Boston, Columbia, Dallas e Nova Orleans acabam de assinar um tratado colaborativo, o chamado “Smart Surfaces”, reunindo mais de 40 organizações para a aplicação de soluções tecnológicas, como o uso de painéis solares, para a redução dos efeitos das mudanças climáticas. Com os termômetros batendo recordes aqui na Europa neste verão, logo me lembro que a capital mais quente do continente, Atenas, foi a primeira a criar o cargo “Chief Heat Officer”, hoje ocupado por Eleni Myrivilli, que responde por soluções para combater as temperaturas elevadas. 

Estamos dando alguns passos, mas a jornada é bem mais longa e precisamos começar a pensar mais na cura do que nos remédios que dão sobrevida para o nosso sistema adoecido

Trago mais um exemplo que ilustra esta colocação. Na Áustria são disponibilizados pontos de coleta de roupas usadas a serem destinadas à doação. O princípio é o mesmo dos cestos que já se tornaram comuns no varejo, onde consumidores descartam itens usados para que sejam reciclados, mas com o detalhe de que estes pontos na Áustria ficam ao lado das lixeiras urbanas, reforçando como a prática de reciclagem pode ser equivocadamente apresentada como uma anestesia à consciência sustentável, por criar a ilusão de fim que liberta a culpa e estimula o consumo do novo. 


Imagem de arquivo pessoal

O questionamento aqui é: estamos mais mantendo ou transformando a lógica da cadeia?

  • Destaco duas soluções para a cura do nosso sistema propostas por Olivia Lazard em sua exposição no TED. A primeira diretamente relacionada ao exemplo acima: modelos regenerativos de cadeias de produção, passam pela redução da necessidade de extração de recursos naturais, o que não significa substituir o consumo de uma fonte de energia por outra ou de um produto não-reciclável por um produto reciclável, mas efetivamente revisar e ressignificar a necessidade do consumo.

  • A segunda, toca no direcionamento de comitês de inovação e criatividade, cada vez mais presentes em organizações de todos os setores: a sustentabilidade deve ser premissa básica para justificar qualquer criação e inovação. Incorporo aqui a alerta aos movimentos que chamo de “espuma”, aquelas iniciativas que fazem barulho e geram mídia, mas não agregam em nada enquanto solução para a alavancagem da regeneração.

“Recorrência” e “constância” são palavras que alimentam iniciativas mais centradas no EGO do que no ECO, afastando a inovação autêntica que precisamos

São estas as palavras que determinam a fórmula de redes sociais e de meios de notícias no geral. E, não distante, também são palavras que podemos atribuir à lógica que impera no atual sistema de consumo e produtividade. Essa dissipação contínua de energia estimulada pelo mindset “recorrência e constância”, esgota a criatividade humana, de modo que ficamos mais ancorados a pequenas ações incrementais do que em grandes transformações disruptivas. Me vi muito provocada por esta reflexão observando um vulcão em erupção. O imaginário coletivo me trazia a ideia de que encontraria chamas constantes, mas na maior parte do tempo as lavas estão mais centradas em ebulição interna, como se estivessem ensaiando ou repousando de alguma forma, porque quando saltam da boca do vulcão parecem artistas de nado sincronizado quando emergem através de piruetas na superfície da água: despontam com vontade, grande intensidade e determinação, rapidamente transbordando e transformando todo ecossistema em seu entorno. O sentimento é de puro AWE – um misto de surpresa e medo pela potência da própria natureza que muitas vezes nos condicionamos a dominar – e a sensação é a de privilégio de poder constatar que a natureza, a nossa origem, é a nossa maior escola!


Imagem de divulgação. Neste post do Instagram, compartilho um vídeo da erupção deste vulcão na Islândia que voltou à ativa recentemente.


Imagem de divulgação. A arte e o esporte estavam entre disciplinas presentes no The___Dream, a programação contou com o espetáculo da Equipe de Natação Artísticas de Portimão.

Como em um exercício meditativo que sugere a observação em perspectiva dos próprios pensamentos, podemos propor a ativação da “Cassandra enlouquecida”

Para usar mais do mindset radical que a imersão na natureza desperta quando nos deparamos com decisões, nos guiando por transformações menos incrementais e mais disruptivas. Esta jornada de evolução para sistemas regenerativos, exige um exercício de dentro para fora, como mencionei no começo. Quando falamos de mudanças e transformações, é preciso estar aberto para regenerar: cuidar do fim para conectá-lo de modo a nutrir o começo. Quando falamos de moda e consumo, são muitos os hábitos e as crenças que precisam passar por este ciclo dentro de cada um de nós, seres humanos ativos e conscientes.

É fácil de escrever, mas voltando à colocação sobre o desafio da prática sustentável consistente, me vem uma conversa que tive recentemente com uma conexão de Portugal, João Sevilhano – que, por sinal, foi um dos palestrantes do The___Dream. Esbarrando no conceito da palavra “ética” na perspectiva clássica grega, que se relaciona com decisões não individualistas, mas que atendem as necessidades do coletivo, nos questionamos sobre ser “coerente”, o que João coloca como seu maior desafio diário – e me identifico! De forma inspiradora, a conversa me provou a pensar no que compartilho aqui para concluir: mais do que a garantia da consistência entre discurso e prática, cuidar desta intencionalidade pode ser a jornada mais sustentável. 

Escrito por Paula Costa

Paula Costa é Comunicóloga formada em Publicidade e Gestão de Varejo pela graduação e MBA da ESPM, com especializações complementares em inteligência de mercado, pesquisa, antropologia, futurismo e inovação e passagem por instituições globais como Hyper Island e Tel Aviv University. Baseada na Europa, transita por diferentes países e eventos de arte, design, tecnologia, inovação, negócios e varejo, realizando curadoria de comportamentos, movimentos e tendências, que se fazem insumos dos insights que compartilha em grupos globais de inovação, como LinkedIn Creator e apoiadora do Fashion Revolution Brasil, além de aulas de Pós Graduação e MBA de instituições como a ESPM, palestras, workshops, mentorias e consultorias de tendências, inteligência estratégica e inovação, baseada na visão da Economia da Paixão, tema do livro de sua co-autoria e  foco do projeto de sua co-criação, o Inquietesi: laboratório da Economia da Paixão para a transição à Era Digital, regida pela Consciência.

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