Comunicação, Moda e Afrofuturismo

By Fashion Revolution Brazil

11 months ago

Por Yuri da Hora Barreto
Para Fórum Fashion Revolution 2023

 

Muitos estudiosos têm explorado a intersecção entre moda e comunicação. Em sua obra “Moda e Comunicação”, Malcolm Barnard (2003) destaca o potencial da moda como fenômeno análogo à comunicação por seu potencial de construção e disseminação de significados complexos. A partir do entendimento de que a moda é uma forma de linguagem que permite, sobretudo, a expressão das identidades tanto individuais quanto coletivas, surge o interesse em mapear e compreender as questões levantadas por Dendezeiro, uma das principais marcas que têm conquistado grande destaque no maior evento de moda do país, o São Paulo Fashion Week. Abordou-se como objetivos geral e específicos compreender como a Dendezeiro, por meio da moda, utiliza o afrofuturismo na comunicação com o público; seus formatos de comunicação; e uso da estética afrofuturista na construção de sua comunicação. Para isto, toma como corpus de análise o fashion film conceitual da coleção “Tabuleiro”, disponível no canal da marca na plataforma Youtube. Se baseia no referencial teórico e metodológico da semiótica discursiva, com base em Diana Luz Pessoa de Barros (2005) e José Luiz Fiorin (2013). De acordo com Fiorin (2013), a semiótica tem como método o percurso gerativo de sentido, uma análise composta de uma sucessão de três níveis, fundamental, narrativo e discursivo. Em nossas análises, privilegiaremos o nível discursivo, aquele responsável por identificar as figuras e temáticas dos textos, bem como os mecanismos de construção de ancoragens, efeitos de realidade, objetividade e subjetividade. Aliados à análise do plano de conteúdo, adotamos, também, as bases da semiótica plástica. Cláudia Oliveira (2004) delineia a semiótica plástica como método que discute as características dos objetos no Plano de Expressão a partir de suas dimensões visuais: cromática, eidética, topológica e matérica.

DISCUSSÕES E ANÁLISE

No tange o campo da moda, considera-se que a indumentária carrega, além de discursos históricos, tecnológicos e socioeconômicos, status de sistema de signos, de comunicação, através do qual o ser humano delineia sua identidade. Usando como plataforma as roupas, coloca-se em evidência uma significação do corpo que as veste. O vestir é uma sintaxe (CALANCA, 2008), uma potente forma de expressão de si mesmo. Identificar e enfrentar as diferenças sociais impostas pela racialidade configura um esforço fundamental, mas definitivamente não se trata de uma tarefa fácil. Para qualquer indivíduo negro, entender as consequencias acarretadas por essa divisão requer, dentre outros fatores, o reconhecimento de si mesmo como corpo de identidade negra. Neuza Santos Souza (1983) defende o auto reconhecimento negro como ponto chave para compreender que “a identidade do sujeito depende, em grande medida, da relação que ele cria com o corpo” (SOUZA, 1983, p. 6). Estas — entre outras — violências produzem a necessidade de articulações necessárias à sobrevivência da pessoa e identidade negra, e é neste ponto em que o Afrofuturismo toma a narrativa.

Mediante uma perspectiva intelectual, a Afrocentricidade se coloca como forma de ideologia antirracista, antissexista e antiburguesa.

A perspectiva que destaca Fábio Kabral (2019) nas discussões sobre o Afrofurismo é, com toda certeza, a “afrocentricidade”. Essa noção inicialmente proposta por Molefi Kete Asante (1980), discute um repensar da “caixa conceitual” que aprisiona os africanos no paradigma da cosmovisão ocidental. A Afrocentricidade articula uma visão contra-hegemônica, questiona a epistemologia simplesmente inveterada nas experiências culturais eurocêntricas. Com o deslocamento físico dos africanos sequestrados em África para o comércio europeu de escravizados, os negros foram “[…]afastados de nossos centros culturais, psicológicos, econômicos e espirituais e colocados à força na cosmovisão e no contexto europeus” (ASANTE, 1980). Expulsos e arrancados de seus próprios lugares de sujeitos na história.

Mediante uma perspectiva intelectual, a Afrocentricidade se coloca como forma de ideologia antirracista, antissexista e antiburguesa. É também ideologia inovadora, capaz de fomentar novas formas de adquirir conhecimento, considerando que “a interrogação de um fenômeno baseado em perspectivas ou atitudes ou valores ou filosofia africanas irá gerar novas informações, padrões de comportamento e percepções” (ASANTE, 1980). Com fundamento na afrocentricidade (ASANTE, 1980), Kabral (2019) discute um mito de Clyde Ford (2000), da obra “O herói com rosto africano: mitos da África”, onde o herói ou heroína vivia a plenitude de sua civilização mas, em tal momento, é raptado por alienígenas e levado para um mundo totalmente estranho, despido de suas subjetividades, saberes, sua identidade, e é brutalizado, deixado nu de si mesmo para que seja escravizado. Esse indivíduo, após muitos anos, se liberta através de seus próprios esforços — não pelas mãos de nenhuma princesa benevolente.

Mesmo nu de toda sua cultura, o herói ou heroína reconstróio seu mundo perdido a partir de passos firmes no novo mundo (KABRAL, 2019). Na reconstrução deste mundo perdido, toda perspectiva parte da ideia de que sociologia, filosofia entre outras ciências importantes são noções fundadas no mundo antigo. Seu berço é o Vale do Nilo, tendo sido fruto dos pensamentos de negros em África (DIOP, 1974). Com o suporte desta perspectiva, o herói ou heroína com rosto africano (2000) não são apenas sujeitos subjugados como nas narrativas da colonialidade, mas descendem dos pioneiros da humanidade (DIOP, 1974).

Para além de ficção ancestral e protagonismo negro, o afrofuturismo deve propor todos os esforços para compreender o presente e planejar o futuro a partir do reconhecimento dos saberes do passado ancestral de filosofia, tecnologia, ciência, arte. Consuma-se em recriar o passado, transformar o presente e projetar um novo futuro através da ótica negra. Desta maneira, os mitos como o da obra de Ford (2000), citado anteriormente, representam manifestações simbólicas que trazem o potencial de curar o trauma histórico da diáspora (KABRAL, 2019). Investigando o percurso gerativo de sentido (FIORIN, 2013) do fashion film, a análise setoriza o vídeo em sete Elementos que obedecem à linearidade da narrativa. A divisão segue o Quadro 1.

 

O primeiro Elemento de ‘Tabuleiro’, referido pela pesquisa como “O tabuleiro”, trata da introdução ao tema. A presentificação da baiana de tabuleiro evoca enorme importância cultural na Bahia e, sobretudo, brasileira. Os cinco Elementos seguintes representam, individualmente, cada um dos pratos típicos a partir dos quais Dendezeiro constrói os valores deste tabuleiro. Acarajé, caruru, abará, vatapá e cocada: em cada um destes Elementos, destaca-se a forma como os elementos culturais postos são traduzidos em expressões estéticas nas peças da coleção, com texturas, padrões e o uso das cores que remetem a cada prato respectivamente.

Por fim, o Elemento ‘A Ceia’ encerra as ideias de ancestralidade, reimaginando uma obra famosa na arte européia, A Última Ceia de Leonardo Da Vinci, a partir da perspectiva decolonial de colocar a cosmologia afro-brasileira como ponto de partida. A pesquisa refere-se a essa seção como “A ceia” a partir das cenas finais, em que os modelos se movimentam suavemente misturando os corpos, num gesto de proximidade que inspira as ideias de comunidade, partilha e colaboração.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Também é um ponto de interesse o modo como o afrofuturismo, a partir das referências estéticas da “maneira de fazer moda”, configura uma ferramenta de combate ao racismo a partir da conquista de acesso a espaços de poder. O racismo nada mais é que a supremacia da branquitude em detrimento de todas as outras identidades, e o poder está diretamente ligado à diferença na partilha de acesso a todo tipo de espaço ou recurso valorizado. “Representação política, […] mídia, emprego, educação, habitação, saúde, etc” (KILOMBA, 1968, p. 75), constituem espaços no qual a população negra sempre está em desvantagem. A moda é mídia e espaço de disputa de poder e influência. Trazer a discussão racial para as passarelas do São Paulo Fashion Week escancara em um espaço de protagonismo branco que o povo negro carrega uma rica cultura e, principalmente, diversas questões subjetivas, por isso apesar do reconhecimento enquanto grupo, negros e negras são indivíduos. Para qualquer indivíduo negro, entender as consequências acarretadas pela divisão imposta pelo racismo requer, dentre outros fatores, o reconhecimento de si mesmo como corpo de identidade negra. Ao declarar que “saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade”, Neusa Santos Souza (1983) dá uma pista de que a identidade — e principalmente, a percepção da identidade negra enquanto identidade política — é uma peça fundamental na luta contra o racismo.

A o fashion film’ evoca — assim como a coleção —, a partir da ancestralidade de resistência inspirada pelas Baianas de Tabuleiro, um rito de preparo para travar um combate à hegemonia dos espaços de moda. É esse passado que Dendezeiro resgata, através de temas de ancestralidade e espiritualidade como ponto de partida para “abrir caminhos”, assim como a marca tem feito no cenário da moda nacional.

A apropriação deste tipo de espaço representa em última instância a tomada do protagonismo neste jogo de poder. Poder de contar as próprias histórias, para criar narrativas de empoderamento, tomar o centro das discussões. Dendezeiro presentifica em suas peças mensagens que fazem parte do imaginário do povo negro em diáspora, organizado em torno da identidade negra as discussões pertinentes a esta identificação. É da necessidade do agrupamento e reafirmação destas identidades que surge a relação entre moda e Afrofuturismo. O emprego da estética afrofuturista é evidenciado no uso dos elementos da cultura afro-brasileira e temas como ancestralidade, tradição, resistência e pertencimento. Propondo a quebra de padrões do universo da moda, como a normatividade de gênero e padrões de corpo e beleza, a marca projeta novos futuros desafiando a hegemonia da moda brasileira, celebrando seu orgulho e cultura no maior palco de moda do país. Uma marca de jovens empreendedores pretos que furaram a bolha e levaram junto consigo toda uma cadeia de produção comprometida com as pautas defendidas.

Por Yuri da Hora Barreto; Universidade Federal do Espírito Santo;
Para Fórum Fashion Revolution 2023.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ASANTE, Molefi Kete. Afrocentricidade como Crítica do Paradigma Hegemônico Ocidental: Introdução a uma Ideia. Ensaios Filosóficos, Volume XIV– Dez. 2016. Disponível em:. Acesso em 11 jun. 2023.
BARNARD, Malcolm. Moda e comunicação. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.
BARROS, Diana de. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 2005.
FIORIN, José Luiz. Elementos de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2013.
CALANCA, Daniela. História social da moda. São Paulo: Ed. SENAC, 2008.
KABRAL, Fábio. O que é Afrofuturismo? TEDxMauá. Youtube, 2019. Disponível em: . Acesso em 28 de maio de 2023.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação – Episódios de racismo cotidiano / Grada Kilomba; tradução Jess Oliveira. 1 ed. – Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
OLIVEIRA, A. C. As semioses pictóricas. In: OLIVEIRA, A. C. Semiótica plástica. São Paulo: Hacker Editores, 2004. p. 115-123.
SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. 1 ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983. Coleção tendências; v.4)