Os impactos do COVID-19 nas relações de trabalho: a uberização da moda

By Fashion Revolution

4 years ago

Disseminado de forma pandêmica, pelo mundo todo, o coronavírus (COVID-19) surgiu no final de 2019, na China. O perigoso vírus vem impactando, assim, todos os locais por onde se instala. Bruno Latour, sociólogo e filósofo francês, refletiu, em um ensaio recente sobre o tema, ponderando que, anteriormente, a imutável ordem mundial demonstra ter, diante da pandemia, uma plasticidade assombrosa. Da mesma forma, todos os padrões de produção e consumo devem ser reconsiderados, para que as sociedades modernas possam seguir se adaptando a desafios cada vez mais complexos e concretos. 

 

O consumo consciente e a produção sustentável são elementos básicos da economia circular na indústria da moda. Da mesma forma, é importante atentar para o fato de que o trabalho nessa indústria ainda é garantia de sustento para uma parcela substancial de trabalhadores, que dela dependem de forma integral. Assim, a desejável redução de consumo e produção em troca do uso racional dos produtos da indústria da moda implica, igualmente, refletir sobre os caminhos possíveis que serão reservados para que esses trabalhadores, deixados, repentinamente, ao largo da atividade econômica na indústria da moda, possam se requalificar e encontrar outras formas sustentáveis de subsistência. Diversas tendências são observadas a partir dessa inegável realidade produtiva e, dentre elas, destaca-se, nos últimos tempos, a denominada uberização das relações de trabalho. 

 

Tecnicamente, o termo uberização vem sendo empregado para definir um novo modo de organização produtiva e do trabalho, baseado na ampla utilização de plataformas eletrônicas que facilitam o fluxo de negócios entre aqueles que demandam e os que oferecem serviços ou produtos. A ideia central, sob o ponto de vista da prestação do trabalho, é facilitar sua realização estritamente de acordo com a demanda, daí sua denominação em inglês como on-demand economy

 

Assim, em princípio, sob o ponto de vista econômico, a redução da necessidade de estocagem derivada do trabalho “por demanda” poderia implicar menos sobras, desaproveitamento e perdas que, normalmente, ocorrem durante a produção, e facilitar o acesso de diversos varejistas – e, até mesmo, consumidores finais – a melhores e menos custosos mercados. Por outro lado, para o mercado de trabalho, poderia representar ofertas mais volumosas e permanentes de trabalho. No entanto, é importante que se reconheça que, em virtude do uso disseminado dos aplicativos, não ocorre, necessariamente, a melhoria das condições de trabalho ou a redução de intermediários entre a oferta e a demanda de serviços e produtos, o que poderia implicar um acréscimo substancial nos valores pagos. 

 

É inegável que a evolução no uso da tecnologia envolve avanços, tais como o aprimoramento da logística empregada na circulação das mercadorias e serviços. Entretanto, outros mecanismos amplamente empregados, tais como o uso intenso de algoritmos, utilizados de forma disseminada tanto para ampliar o controle sobre os padrões de consumo quanto, também, a prestação do trabalho, não oferecem contornos tão positivos, chegando a deteriorar ainda mais as condições de trabalho de milhares de trabalhadores inseridos na cadeia de fornecimento. 

 

Apesar do surgimento de algumas soluções que podem ajudar a reduzir o déficit de trabalho digno na produção da moda, há vários desafios trazidos pela crise sanitária e econômica causada pelo COVID-19 que ainda não foram devidamente enfrentados. Acresça-se a esses fatores todos o fato de que as alterações dos padrões de consumo impulsionadas pela pandemia podem vir a ser permanentes, implicando, adicionalmente, uma intensificação do uso do e-commerce para a venda de itens do vestuário. Dessa forma, à pergunta inicial proposta pelo Fashion Revolution sobre quem fez as nossas roupas, certamente, deverá ser agregada outra, relacionada com o avanço da uberização e da logística, em tempos de queda do consumo nas lojas de rua. Afinal, além da possibilidade cada vez mais real da customização eletrônica dos modelos que serão utilizados, a uberização envolve a facilitação do acesso do consumidor a diversos estoques, realizada a partir do estímulo ao uso do e-commerce.  

 

Quem transportou as minhas roupas? Como – e de onde para onde – foram transportadas as minhas roupas? Qual a forma de contratação das pessoas que transportaram as minhas roupas? Quantos intermediários existiram até que a minha roupa tenha chegado até mim? Quais foram as condições de trabalho – jornada, respeito aos intervalos, remuneração, segurança e saúde, garantia de gozo de férias, compatibilização do trabalho com a vida familiar, concessão de benefícios típicos da seguridade social etc. – experimentadas pelas pessoas que transportaram as minhas roupas? Enfim, apresenta-se, novamente, uma série de perguntas que se reproduzem e se repetem a partir da primeira, todas elas centrais nessa revolução da sustentabilidade proposta pelo Fashion Revolution. 

 

No fim, novamente, faz-se necessário evoluirmos nos debates sobre a ampliação dos padrões de responsabilidade praticados nas cadeias de fornecimento da indústria da moda. As novas formas produtivas e comerciais da indústria da moda podem gerar diversas oportunidades, mas se apresentam também com desafios incomensuráveis no que diz respeito à garantia de melhores condições de renda e de trabalho para todas as pessoas que contribuem com o valor agregado de cada peça. Dessa forma, o fomento a um maior e mais robusto padrão de responsabilidade pelos novos elos da cadeia de fornecimento da moda que vão se formando a partir da uberização, representa um estímulo adicional à sustentabilidade, à moda circular e ao consumo consciente. 

Texto de Renato Bignami, Auditor-Fiscal do Trabalho, Mestre e Doutor em Direito do Trabalho e Responsável pela criação do sistema brasileiro de combate à escravidão na indústria do vestuário.
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