Moda são modos: por novos modos de fazer moda

By Fashion Revolution

5 years ago

Transformar é mudar a forma de um sistema. Requer agentividade, pois é uma ação. Nós, humanos, ao longo dos séculos passamos por muitas transformações nos modos pelos quais nos alimentamos e nos vestimos. Nossa cultura produziu tecnologias que aumentaram a produção e o acesso a bens essenciais à manutenção da vida em uma escala tão absurda que hoje geram enormes desperdícios e impactos ambientais. É chegada a hora de questionar: quem é beneficiado e quem é prejudicado por esses excessos, abundância de bens e desperdícios? 

No Brasil, uma das primeiras ações a ser feita ao se criar uma empresa é estabelecer uma razão social. Farei uso deste critério para lançar um questionamento: qual a razão da existência das empresas para a sociedade? Geram valor e riqueza para quem?

A globalização dos mercados gerou um afastamento entre os produtores (empregados das indústrias e seus investidores) e as pessoas – que vivem suas vidas em diferentes partes do globo e usam seu tempo, energia física e intelectual para trabalhar em troca de dinheiro, que lhes permite acessar os produtos globais. E os produtores, para valorizar o retorno dos investidores, ou seja, o lucro dos acionistas, precisam aumentar a sua produtividade, seja instalando-se em países cuja mão de obra seja barata (por conta da ausência de direitos trabalhistas), seja substituindo-a por máquinas cada vez mais inteligentes (a revolução 4.0 está chegando na indústria da moda, como alternativa à exploração da mão de obra barata). Esses modelos de negócios geram CEOs e investidores bilionários (como o caso das maiores redes de Fast fashion globais), trabalhos precarizados e pessoas infelizes e doentes (doenças crônicas, ansiedade, depressão, entre outras). Precisamos mudar esse sistema. Precisamos de alternativas que valorizem as pessoas, a vida comunitária local e não apenas poucos investidores globais. Precisamos de modelos que respeitem todas as formas de vida. Que garantam a sobrevivência de ecossistemas, onde humanos e natureza encontrem um modo de convívio equilibrado.

Se estivermos atentos é possível perceber no nosso cotidiano que às vezes uma pequena mudança, como, por exemplo, a inserção de uma tecnologia em um contexto favorável, pode transformar uma cultura. O impacto dos smartphones aliado às redes socais é visível nas transformações dos modos de nos relacionarmos com amigos, familiares e empresas. Então, surge um outro questionamento: considerando todas essas mudanças, por que as lógicas do sistema da moda se mantém desde a revolução industrial? Seus modelos de negócios pouco mudaram: profissionais são responsáveis por identificar as tendências de compra da população. Estes, informam os produtores de matérias-primas sobre essas possíveis escolhas. Estes produzem fios, corantes, tecidos e aviamentos para abastecer a cadeia de confecção, que por sua vez produz grandes estoques de produtos para os varejistas comercializarem ao consumidor final. Entre cada um desses elos da cadeia temos representantes comerciais, profissionais de marketing e publicidade que configuram a oferta do modo mais persuasivo para que a outra entidade compre o seu produto. Somado a esses, temos os operadores logísticos, que precisam deslocar os estoques ao redor do globo. Contudo, as empresas geram um volume de produção incrivelmente maior do que a capacidade das pessoas o absorverem, e então resta-lhes encontrar modos de queimar os estoques (às vezes no sentido literal, outras no sentido comercial) para se livrar dos excessos. Se essa alternativa não funcionar, doações são realizadas para instituições de países pobres. Ao final, esses excessos vão parar no lixo (que podem ir para rios, mares ou para aterros sanitários). Em todos esses casos, há perdas. Perdas ambientais e perdas culturais. Será que precisamos desta quantidade gente, horas de trabalho, tempo de vida para produzir excedentes que serão queimados ou jogados fora? A tecnologia possibilitou a produção global de produtos cada vez mais baratos, mas que geram pouca riqueza, além do valor para os acionistas. Que outro caminho de fazer moda é possível, gerando valor para a vida e para o território onde estamos inseridos? Qual o papel do consumidor e das empresas nessa mudança? Que outros modos de fazer negócios são possíveis?

A realidade da indústria da moda brasileira é diferente da global. Temos majoritariamente pequenas e médias empresas, normalmente familiares, com vínculos com o território local. Pergunto: Como podemos fazer negócios de outro modo e competir com grandes conglomerados globais? Como gerar valor pelo nosso capital cultural, ao invés de copiar as grandes marcas? 

Eis que entra a pesquisa em design estratégico para a sustentabilidade que desenvolvo na Unisinos. Ezio Manzini, há vinte anos indicava um caminho para uma transição sustentável que requereria uma profunda mudança na cultura industrial. O design estratégico para a sustentabilidade buscaria reorientar os modelos de negócio de um foco tradicional de produtos para novos modelos de sistemas-produtos-serviços, situados em um contexto social e espacial, implicando novas relações complexas entre diferentes atores do sistema sociotécnico. O design estratégico resultaria em soluções empreendedoras onde todos sairiam ganhando: o produtor, o usuário e o ambiente. Dez anos mais tarde, Manzini evolui seu pensamento afirmando que o design estratégico não apenas deve gerar essas soluções, mas ser capaz de identificar soluções promissoras e projetar plataformas que as potencializem: ou seja trabalhar no contexto favorável para o seu crescimento.

Nas pesquisas que realizamos nos últimos anos, encontramos sinais de que é possível fazer de modo diferente. São ideias promissoras, que podem ser potencializadas e difundidas para gerar a transformação cultural necessária. São sementes de inovações que precisam encontrar solos férteis para germinarem e prosperarem. Precisamos também nutri-las para que se desenvolvam. Aqui no Rio Grande do Sul encontramos algumas organizações com modelos de negócios diferenciados, fundamentados em conceitos como a economia circular ou a colaboração. Cito três exemplos: Revoada, 3JNS e Coletivo 828.

 

A Revoada é uma organização que propõe o método de design vital para o desenvolvimento de produtos, a partir dos fundamentos da economia circular. Seu modelo de negócios foi estruturado de modo a gerar produtos que tragam um novo sentido para a vida de seus consumidores, reduzindo a distância entre quem cria e quem usa. No seu processo de ação-reinvenção, trabalham com dois segmentos de clientes: corporativo (com produção de brindes e consultorias) e consumidor final. Invertem a lógica do sistema de produção e consumo, passando a produzir apenas sob demanda, por meio da venda de lotes de produtos e se responsabilizam pelo destino final dos produtos, quando os consumidores não os quiserem mais. 

A 3JNS é uma empresa que adota um modelo de negócio abrangendo todos os ciclos da economia circular: reformar, redistribuir, reproduzir e reciclar. Desenvolvem produtos de moda sustentável a partir de matéria-prima de qualidade, permitido um longo ciclo de uso do produto, respeitando o ambiente, as pessoas que os produzem e a comunidade local. Seu modelo de negócio considera três ciclos de circulação dos produtos no sistema produção, comercialização e consumo. Trabalham com parceiros nacionais para produzir, ressignificar, distribuir, coletar e redistribuir os produtos até o final de três ciclos, onde a peça é encaminhada para a reciclagem.

O Coletivo 828 é um ponto de varejo que inova no modelo de negócios pelo fundamento da colaboração. É um espaço que comercializa produtos de moda sustentável rastreáveis, produzidos localmente por empresas que remuneram de modo justo todos os participantes da cadeia de produção. O coletivo conecta os consumidores à marcas sustentáveis. Para os consumidores, as gestoras do coletivo fazem uma curadoria das marcas, pelo design minimalista e atemporal. Para as marcas, elas oferecem informações sobre como aprimorar os produtos, a partir da experiência no ponto de venda, colaborando para o crescimento e o fortalecimento dessas marcas. Além disso, é um espaço que fomenta o empreendedorismo feminino, buscando gerar momentos de troca de conhecimentos sobre o tema, por meio de rodas de conversas e workshops. 

Nestes três exemplos vemos modelos de negócios que produzem outros valores além da busca pelo retorno sobre o investimento. Buscam gerar riqueza para o território onde estão inseridas, ensinando aos consumidores outros modos de consumir produtos de moda. Produzem sob demanda ou em pequena escala, reinserem os produtos no ciclo de produção e se responsabilizam pelo fim da vida útil das peças comercializadas. São negócios que prezam pela colaboração, pela parceria e se potencializam pela troca de expertises. São sementes de uma possível mudança no sistema da moda, pautados pela aproximação entre produtor e consumidor possibilitados pelas tecnologias e redes digitais, capazes de gerar produtos com informação de moda que unem ética e estética, com valor social e cultural. 

 

Por fim, fica o questionamento: o que nós como sociedade podemos fazer para tornar os ambientes mais favoráveis para esses novos modelos de negócios florescerem? Nossas escolhas são atos políticos que podem transformar o mundo. Que mundo você deixará para as próximas gerações? Fica aqui um estímulo para mais reinvenções e design vital nas empresas.

Fonte foto: Revoada 

 

Por Karine Freire: Doutora em Design pela Puc-Rio. Professora e Pesquisadora em Design para a Inovação Social e Sustentabilidade. Atua no laboratório de pesquisa SeedingLab liderando mestrandos e doutorandos em pesquisas na área de moda sustentável, no projeto Ecossistema da Moda Sustentável.