Costurar é ancestral: precisamos resgatar o feito à mão

By Fashion Revolution

4 years ago

Conheça o projeto LAB Arremate e 3 costureiras de mão e coração cheio da periferia de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro

Antes de tudo, antes das palavras abaixo chegarem até você, faça um breve exercício: olhe para a peça de roupa que te veste, muito provavelmente. Agora olhe para suas mãos. Tente imaginar quantas, semelhantes as suas ou as minhas que escrevem esse texto, passaram por esta mesma roupa que te veste. Lembre-se da extensão da cadeia produtiva da moda: passa pelo campo e instalações petrolíferas, flui até as águas, se traduz nos desenhos, se remenda nas costuras e chega até elas. 

São milhares. E faz tempo: o contato humano com o ato de se vestir e se cobrir começou no período paleolítico, passando pelo surgimento da agulha com marfim de mamute, ossos de rena e presas de leão marinho; depois, a modelagem foi tomando forma transformando materiais bidimensionais em tridimensionais; o tear manual é criado e se tece com insumos da agricultura de lã e algodão – que já era cultivado na Ásia antes mesmo da Europa iniciar suas cruzadas colonialistas.

Mais um pouco e caímos na Revolução Industrial européia: surge a costura – que até então era integralmente manual – com máquinas e equipamentos. Implementa-se a produção em larga escala e chegamos até os dias de hoje, com um sistema de moda que costura 150 bilhões de peças ao ano. Com isso, o papel social do trabalho feminino na moda se moldou a partir da costura, sendo indissociável do lugar doméstico dado à mulher e no desenvolvimento do capitalismo.

A moda que conhecemos hoje é diferente da moda de séculos atrás, mas lá ou aqui, as manualidades se fizeram presentes e indispensáveis para sua consolidação, e embora roupa não seja necessariamente moda, a moda não existe sem a roupa. E nesse vai-e-vem, a costura materializa a moda. E a moda materializa nossos espíritos, do tempo e da humanidade. 

Hoje, essa costura tem sido sustento e abrigo para muita gente. O Brasil concentra 1,5 milhões de trabalhadores na indústria do têxtil e vestuário; se somarmos os trabalhadores informais, o número pode chegar a 8 milhões – de mulheres, porque elas representam 75% do total. E a maioria, costurando: o ofício da confecção é o predominante. 

A ancestralidade contida na costura  

Nestes remendos, a costura manifesta sua ancestralidade por meio da memória, porque costurar é colocar memória. É fazer com as mãos, e quem faz com as mãos coloca sempre um pouco de si. Então costurar é um legado.

O momento de agora, com uma pandemia global sem precedentes colocando a prova diversos modos de pensar e fazer, nos mostra a importância dessa ancestralidade. Precisamos olhar para o mundo por outro espectro. Estávamos com uma lente torta e torpe, e talvez – com uma essencial dose de trabalho de base para que esse talvez seja um sim – essa lente possa ser subvertida para uma que olhe para as mãos, invés de olhar para cifrões.

Talvez, se assim fosse, não teríamos agora milhares de trabalhadores em Bangladesh sofrendo sem trabalho e sem indenização por conta de contratos cancelados por enormes varejistas, porque estaríamos valorizando vidas e não apenas números. Talvez, no Brasil, não precisássemos ter campanhas de doação para compra de cestas básicas para famílias de imigrantes costureiros que não tem novos pedidos, porque a distribuição de riquezas se daria de forma justa na cadeia produtiva do vestuário. 

Então, agora, reconectar-se com nossos legados é uma oportunidade urgente – como sempre foi – na missão de humanizar a moda. E também resistência, como sempre foi também. Há séculos tentam atar as mãos de quem cria memórias resistentes aos apagamentos, tentam silenciar vozes e empilhar corpos negros, indígenas, de mulheres e de pobres. Então manter viva a memória das mãos é uma forma de dizer “não irão me desmanchar.”

Personificação da costura ancestral: conheça o Lab Arremate e 3 costureiras da periferia de Duque de Caxias

As mãos ancestrais que poderiam ser agraciadas, celebradas e potencializadas por uma moda criativa e emancipatória, são muitas vezes designadas a produção em massa sem propósito, com prazo de validade e acumulação tão sem propósito quanto. O retrato do trabalho informal no Brasil – e mundo – pode ser com nuances penosas. Em muitas vezes, ele é um quadro pintado à mão pelo neoliberalismo, prometendo um horizonte promissor mas entregando mazelas e obras mal acabadas. 

Porém, existem outros pontos sendo tecidos com mãos que costuram sonhos e entrelaçam alegrias cotidianas. Existem vidas que se realizam e se somam por meio do trabalho com a moda e com a costura, já que uma não existe sem a outra. 

O retrato da ancestralidade de hoje se pinta na história da Luiza Alves Batista Oliveira, 61, Geovania Barbosa da Silva, 47, e Lidiane Lidiane Alves de Oliveira, 28. As primeiras, duas costureiras de mão e coração cheio: Luiza há mais de 40 anos, e Geovania há mais de 10, que trabalham como autônomas; a terceira, filha-artista de dona Luiza – que diz que para ser costureira tem que comer ainda muita rapadura – e progenitora do Laboratório Arremate, “um espaço autônomo de criação periférica”, em Duque de Caxias.

Da esquerda para a direita: Lidi, Luiza e Geovania.

Num dia aleatório de janeiro no Rio, aterrissei direto no ateliê, que também é casa, da dona Luiza, onde juntamente trabalha a dona Geovania, há dez anos. Fazia sol e um gato colorido me recebeu na porta.

De início, Lidi, que é cientista social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), contou que decidiu aprender a costurar quando sua mãe Luiza foi diagnosticada com um problema de visão há mais ou menos 2 anos. Dona Luiza aguardou esse tempo na fila do Sistema Único de Saúde (SUS) para realizar o transplante, passou por 3 cirurgias e teve que ficar meses de molho, trabalhando pouco ou nada. Ela conta que os sonhos, a noite, eram “costurando , claro!”.

Lidi confidenciou que antigamente não se dava bem com a costura. Era intimidada por ela, por conta das visualizações maldosas da desumanização que acometiam sua mãe ao longo do oficio. “Eu cresci vendo elas sendo totalmente desumanizadas, eu ficava muito com uma aversão do que é a moda”, conta. Mas, aos poucos, no compasso que aprendeu a costurar, aprendeu também o lugar de ancestralidade que a costura ocupa: “depois consegui entender e trazer isso nas minhas criações colocando essa roupa enquanto uma história, enquanto tradição; tem pessoas que usam algumas roupas que eu crio, que compram porque lembram da mãe; tem um lugar da afetividade naquilo, tem o lugar de uma história.”

Aí entra um ponto crucial: a valorização da roupa enquanto memória, não só pela sua história e trajetória material no mundo, mas pela história e trajetória de quem a fez, a memória colocada ali pela mão que a costurou. Isso a Lidi também relembrou quando disse que “a moda é um conhecimento totalmente ancestral”, junto de sua interpretação da “moda com ativismo, conexão e espaços de acolhimento.”

Mas temos valorizado essa ancestralidade? E mais, temos reconhecido seu poder de mudança num mundo tão flagelado? Para Geovania, a resposta está na urgência em fazermos as coisas com amor. E entender que a costura precisa ser autenticada enquanto uma autonomia. “A pessoa que está lá fora […] precisa entender que a costura, a costureira, também tem sensibilidade, é um ser humano, e precisa ser reconhecida. Nós que costuramos precisamos ser reconhecidas, não como uma coitada – porque muitas pessoas acham que nós somos coitadas –  e no entanto não somos, eu pelo menos não me sinto coitada, eu me sinto bem.” 

A costureira conta como a costura tem sido sua salvação: “eu realmente gosto do que eu faço, eu me realizo, posso estar cheia de problemas, de confusão na mente, mas quando eu sento nessa máquina, poder costurar e fazer o que eu amo, o tempo passa que eu nem percebo.” 

Pausa para o café

Recebemos a Maria Luiza, neta de dona Luiza. Pausa para tomar um café com leite. São momentos como esse que fazem também da costura uma ancestralidade: um afago na família, uma faísca da infância, uma visita inesperada. Costurar é um ritual. Viver é um ritual. Por isso a semelhança constante. 

Geovania costurando

Os saberes contidos nesta ancestralidade também são valorizados de forma desigual. Lidi reforça que “essas mulheres estão na periferia fazendo produção do saber há anos, e aí quando alguém dentro de uma Universidade produz aquele saber, é enxergado de outra forma”. Dona Luiza relembra algo importante: “uma coisa simples que a gente sabe, eles não sabem”. Ou seja, existem saberes diferentes, e todos merecem ser celebrados igualmente, e não expropriados. 

Quando perguntei o que a costura as ensinou sobre a vida, para ambas costureiras, a resposta foi unânime: ter paciência. “Aprendi a ter paciência, entender o próximo, que ninguém é igual a ninguém, cada um tem seu tipo e seu jeito”, conta dona Luiza, endossada logo em seguida por dona Geovania. Depois, para descontrair, perguntei o que cada uma mais gostava e menos gostava de costurar. Dona Luiza respondeu “macacão, é difícil acertar o movimento”, e dona Geovania respondeu que não gostava de costurar “roupa de criança”, e ao fundo dona Luiza brincou: “é pecado!”.

A conversa revela, de forma despretensiosa, como uma roupa pode carregar tantos significados, gostos, manias e memórias de quem as confecciona, e como a costura pode ensinar sobre a liturgia da vida.

A crise nos revela, mais intensamente, que resgatar é preciso

É possível construir uma costura ancestral, é possível preservar e potencializar a ancestralidade da costura – como Lidi, dona Luiza e dona Geovania nos provam. Precisamos entender o potencial das nossas mãos. E aqui quero dizer entender a potência dos saberes ancestrais, do resgate que nos leva de volta à humanização dos corpos, da prática feita também com o coração, daquilo que dá sentido à vida e o sagrado que existe em cada conexão imaterial. 

A moda que queremos ver, no hoje e no amanhã pós-pandemia, é a moda regida por esses passos. É  moda que há 7 anos entoamos no Fashion Revolution: justa, transparente, empática, criativa, emancipatória, atenta às manualidades. Para seguirmos firmes nessa pavimentação, precisamos dar as mãos e segurar as pontes possíveis, firmes, caminháveis. 

Como bem colocou Dona Geovania em uma de suas falas, “não deu certo aqui, vamos fazer de outro jeito”. Ela falava sobre a costura, mas vale para a vida. Vale para esse sistema de moda falido, que já comprovou que não deu certo mediante os casos de desumanização que acontecem e se escancaram. Não deu certo. Vamos fazer de outro jeito. É possível desmanchar e começar de novo. 

por Bárbara Poerner