Alerta de tendência: a desigualdade está na moda!

By Fashion Revolution Brazil

2 years ago

Durante a pandemia, ganhamos um novo bilionário a cada 26 horas. Todos os dias, a desigualdade contribui para a morte de 21.300 pessoas no mundo todo.

 

*por Julia Codogno
Imagem: Ugur Gallen

Desde o início do cenário pandêmico, que foi decretado no Brasil em março de 2020, estima-se que um novo bilionário tenha surgido num prazo médio de apenas 26 horas. Diante de um dos eventos mais danosos à vida de milhares de pessoas, os homens mais ricos do planeta, como: Elon Musk, da montadora Tesla e à frente de experimentações acerca de “levar vida a outros planetas”; Jeff Bezos, fundador da varejista Amazon; Bernard Arnault e integrantes de sua família, um dos controladores do grupo LVMH – detendo 75 marcas de luxo presentes no mundo todo; e diversos outros, dobraram suas estimadas fortunas, de aproximadamente US$ 700 bilhões para algo em torno de US$ 1,5 trilhão. Resultando num crescimento de US$ 15 mil por segundo. Este é o maior aumento de fortunas já registrado. Sendo considerado um recorde histórico de tamanha desigualdade Os números pertencem ao relatório “A desigualdade mata” – OXFAM

Exploração e empobrecimento. Em 2021, foi identificado que centenas de bilionários utilizam paraísos fiscais para evitar o pagamento de seus impostos, fazendo com que governos do mundo todo – principalmente os mais pobres – perdessem mais de US$ 200 bilhões por meio de evasão fiscal corporativa. Novos números e análises divulgados no final de 2021 pelo World Inequality Lab revelam que, desde 1995, os 1% mais ricos capturaram 19 vezes mais do crescimento da riqueza global do que todos os 50% mais pobres da humanidade.

Uma pesquisa recente, realizada pela Euromonitor, apontou que a classe A no Brasil já é responsável por 20% do consumo. Segundo o relatório, com a impossibilidade de compras em outros territórios – devido às medidas sanitárias da COVID-19, os brasileiros pertencentes a esse grupo passaram a consumir internamente e a “investir” em outros mimos do mercado de luxo. Itens como: helicópteros, carros esportivos ou imóveis maiores, se tornaram um alvo de bastante interesse. Como exemplo, temos a marca Porsche, que obteve crescimento de 24% em suas vendas se comparado ao ano anterior. Já os helicópteros viram suas encomendas crescerem em 26% em 2021.

Só para termos uma ideia de tamanha discrepância, atribuída à exploração de um em detrimento de poucos reles mortais, o patrimônio dos 10 homens mais ricos é maior do que o dos 3,1 bilhões de pessoas mais pobres do mundo. 

“Que comam brioches” – Maria Antonieta

 

No mesmo período onde alguns poucos vislumbraram suas riquezas florescerem, o Brasil voltou a integrar o mapa da fome. Segundo o mesmo documento citado acima [OXFAM], a miséria e a fome explodiram no Brasil durante a pandemia. Em 2020, 55% da população brasileira já se encontrava em situação de insegurança alimentar – pessoas que não sabiam se teriam algo para comer ao longo do dia, o equivalente a 116,8 milhões de pessoas. Cerca de 19,1 milhões de pessoas se encontram em situação de fome.

No Brasil, a pobreza tem cor. Tal cenário afeta mais as pessoas negras. Em 2020, estima-se que 10,7% das casas imersas nessa situação eram chefiadas por pessoas negras. Quando essas famílias são chefiadas por mulheres negras, esse percentual sobe para 11,1%. A falta de alimentos e nutrientes básicos para a saúde mata 2,1 milhões de pessoas a cada ano [OXFAM]. 

Como a moda costura esse cenário?

Durante a pandemia, foram diversas as denúncias acerca de demissões, rupturas contratuais e desalento perante às pessoas que fazem essa engrenagem funcionar.
Em Bangladesh, um dos maiores pólos têxteis do mundo, abrigando algo entre 3.500 fábricas de roupas e mais 4 milhões de trabalhadores, dezenas de milhares de pessoas, em sua maioria mulheres em situação de já grande vulnerabilidade, encontram-se sem renda ou qualquer segurança quanto ao recebimento de pedidos já realizados.

De acordo com a Associação de Exportação de Fabricantes de Vestuário de Bangladesh [BGMEA], 1.025 fábricas relataram 864,17 milhões de peças no valor de US$ 2,81 bilhões em exportações canceladas. Segundo Rubana Haq – presidente da BGMEA “Com tantos pedidos cancelados e em espera e sem visibilidade de nenhuma resolução confirmada, estamos com uma perda total neste momento”.

No mesmo período, o governo chegou a emitir um socorro às indústrias do setor, destinando algo em torno de US$ 600 milhões como medida provisória. Valor que, após ter sua distribuição pré-estabelecida, poderia cobrir apenas um mês de salário da classe. Situação que, pouco depois, provocou uma retomada precoce das fábricas pelo país. Expondo seus funcionários sem qualquer tipo de cuidado ou controle quanto à pandemia. 

Bangladesh é um importante exemplo para que possamos compreender a lógica a qual estamos inseridos em prol do sistema operacional – para além da moda. Na última década, estima-se que mais de 700 mil pessoas deixaram as zonas rurais rumo a outras cidades, especialmente Dhaka – capital deste pequeno país. Tal deslocamento, promovido em grande parte por mudanças do clima e perdas básicas como, por exemplo, o cultivo e venda de alimentos, fez o número de comunidades marginalizadas crescer exponencialmente. É esperado que mais de 4 milhões de pessoas estejam vivendo em favelas da região. A crise climática deve ser o maior motor de migração interna em Bangladesh ainda neste século. 

Grande parte dessa comunidade, com baixo conhecimento profissional para além das funções exercidas comumente em lavouras, se transforma em mão de obra barata para garantir uma sobrevivência desprovida de qualquer assistência básica para suas famílias. Segundo o Banco Mundial, até 2050, o número de pessoas deslocadas por conta das diversas consequências das alterações do clima no mundo todo pode chegar a 13,3 milhões. 

Vale ressaltar que, a mesma indústria que teve suas operações como uma das mais afetadas ao longo da pandemia, principalmente em locais mais miseráveis, também é responsável por gerar receita anual de estimados US$2,5 trilhões de dólares – segundo o relatório The State of Fashion. Nos fazendo lembrar que personalidades como Bernard Arnault do grupo LVMH (já citado acima), Amancio Ortega do grupo Inditex (mais reconhecido pela marca Zara) e tantos outros empresários do setor, seguem com seu precioso acúmulo de capital em meio ao caos.

Em suma, o que notamos é uma violenta escalada reprodutiva subsidiada por corpos fragilizados e desprovidos de qualquer escolha para que uma parcela mínima possa desfrutar de qualquer benefício. Assistimos uma crescente exposição de regiões mais pobres, condicionadas a severas mudanças do clima, ocasionando o deslocamento de comunidades inteiras, sucateadas e sendo destinadas a servir aos mesmos senhorios que as colocaram em tais situações.

Luta e revolução!

Como frente a essas e outras condições, o Accord on Fire and Building Safety – também conhecido como Acordo de Bangladesh, voltou a ocupar um local de destaque durante os últimos meses. O tratado surgiu logo após o desabamento do Rana Plaza como forma de responsabilizar marcas e empresas a conduzirem suas atuações frente a processos de terceirizações de suas produções. O documento previa que empresas fossem autuadas diante de práticas abusivas ou não cumprimento de diretrizes básicas que garantem a integridade de seus trabalhadores e contratados. Após ter vencido em 2018, e ter sido permeado por diversas discussões quanto à uma atualização emergencial, em 2021 ele voltou a vigorar como um novo contrato provisório, intitulado International Accord for Health and Safety in the Textile and Garment Industry. O novo formato mantém a possibilidade de sujeitar as empresas a ações judiciais caso suas fábricas não cumpram os padrões de segurança do trabalho, corresponsabilidade entre fornecedores e marcas,  treinamento e monitoramento do comitê de segurança supervisionado pelo Conselho de Sustentabilidade RMG e um mecanismo de reclamações independente.

O acordo é parte de um processo de (re)volução de uma indústria feita por pessoas e que precisa operar como um fio condutor de entregas mais justas e igualitárias para todos. 

“Trabajar menos, trabajar todos. Producir lo necessario. Redistribuir todo”.

*Julia Codogno é comunicadora de moda e sustentabilidade. Desenvolve seu trabalho por meio de mentorias, palestras e conteúdos educativos. É criadora de um guia digital que reúne mais de 200 marcas com iniciativas de impacto positivo. Acompanhe @juliacodogno